Nesta edição publicamos a conclusão da entrevista com Gustavo Caldeira: 

Prof. Doutor Gustavo Caldeira - o professor Decano da Universidade de Aveiro
Professor Doutor Gustavo Caldeira

 

7. Falemos agora de alguns projectos. Quais foram os projectos que mais gostou de desenvolver aqui no Departamento, na Universidade de Aveiro? Projectos de investigação e pedagógicos?

     Prof.: Em termos de investigação, a orientação científica dos diversos projectos que apoiaram trabalhos de investigação que conduziram ao grau de doutor. Devo contudo confessar que a nível de organização das actividades de investigação no Departamento as desilusões superam o grau de satisfação. No entanto, não posso deixar de mencionar a satisfação que tive em ajudar a criar o Departamento, pelo qual fui responsável durante largos anos, assim como a primeira estrutura de organização e financiamento das actividades de investigação do Departamento, o Centro de Ecologia do INIC.

No aspecto de organização do ensino, a criação do curso de Licenciatura em Biologia, em condições bastante adversas, foi sem dúvida a actividade que me deu maior satisfação. A transformação do Bacharelato em Ciências da Natureza na Licenciatura em Biologia/Geologia, em 1978, a enorme pressão gerada pela evidente falta de professores qualificados para satisfação das necessidades das escolas do ensino secundário que na época se fazia sentir, aliadas às crónicas dificuldades de obtenção de emprego dos licenciados em Biologia, fora do sistema de ensino, davam origem a uma situação muito difícil para fazer passar com sucesso, tanto a nível da UA como dos responsáveis políticos. A nível da UA (sobretudo a nível do Conselho Científico) a principal objecção eram os possíveis prejuízos que poderiam advir para o curso de B/G, tanto em termos de recursos como em termos de concorrência, quer à entrada quer à saída da Universidade. Contudo, eu sempre estive convencido, e continuo hoje convencido, que um Departamento que não tenha mecanismos de formação integral dos seus próprios docentes (pelo menos uma fracção maioritária), isto é, que obtenham a licenciatura e o doutoramento na UA, estará condenado ao insucesso. Neste contexto, a autonomia universitária deveria permitir gerir as regras dos concursos de modo a assegurar a progressão dos docentes com formação inicial obtida na própria escola. O argumento da indispensabilidade da formação dos próprios docentes, dado que o curso de B/G pelo seu currículo dispersivo era e continua a ser inadequado para o efeito, acabou por possibilitar a criação, com a respectiva aprovação ministerial, da Licenciatura em Biologia.

Que era...?

     Os currículos dos actuais cursos universitários de formação de professores carregam ainda os resultados da solução que foi encontrada nos finais dos anos 70 para resolver carências docentes muito graves surgidas com a explosão da população discente nas escolas secundárias. O aumento da escolaridade obrigatória nos meados da década de 80 veio dar continuidade à notória falta de professores, pelo menos em algumas áreas, com as qualificações académicas consideradas desejáveis. Estas pressões sociais originaram a necessidade da formação de grande número de professores com as qualificações académicas tidas como suficientes e que facilitou a aceitação quase generalizada da ideia de que, independentemente das capacidades individuais do sujeito, se pode fazer dele um bom professor desde que se ensine a ensinar bem, mesmo aquilo que sabe muito mal. Para mim a formação específica dos professores (leia-se pedagógica no sentido lato) devia ser ministrada após a obtenção de uma formação científica (leia-se matérias a ensinar) sólida, possibilitando aos próprios candidatos a professor saídas profissionais alternativas e válidas, no caso de descobrirem ser portadores de características pessoais pouco compatíveis com o exercício da docência. Por outro lado, a formação terminal envolvendo o exercício efectivo da docência em situação de formação profissional devia ser da responsabilidade de escolas preparadas para o efeito, com a obrigatoriedade de recorrerem a avaliações externas.

 

8. Se calhar podia somar isso. É que a minha próxima pergunta é quais seriam para si as causas do insucesso escolar.

     O insucesso escolar, a nível universitário, atinge níveis que, em termos comparativos, serão incompatíveis com a plena integração do País na Europa, a longo prazo. São indispensáveis medidas políticas de fundo a nível de todo o sistema educativo para que de forma sólida, segura e sem artefactos de camuflagem se possam, realmente, trazer os níveis do insucesso universitário para valores aceitáveis, em termos comparativos, com a generalidade dos países europeus.
As causas do insucesso escolar são múltiplas e de diversas origens pelo que numa simples e despretensiosa conversa não são susceptíveis de ser analisadas. Uma das origens radica no percurso escolar anterior à entrada da universidade, pois são notórias as lacunas de hábitos de trabalho e de formação com que os alunos terminam o ensino secundário e em que os menos culpados são certamente os próprios alunos. Por exemplo, a chamada gestão democrática das escolas e que só o é em termos de formalismos processuais, gera uma tal diluição de responsabilidades individuais e origina, por conveniências eleitorais, fenómenos de caciquismo, que propiciam excelentes condições para que ninguém consiga separar o trigo do joio. Em apoio desta confusão correm algumas correntes pedagógicas, defendendo a ideia de que a educação deve assentar na cultura e prática da lei do menor esforço, isto é não contrariar a natural tendência humana de seguir pelo caminho mais fácil. Isto leva a que a aquisição de hábitos de trabalho seja adiada para idades em que já está consolidada a tendência natural não contrariada pelo processo pedagógico e, portanto, o sucesso do processo educativo fica condenado. Em relação ao processo educativo sou adepto do espartanismo.


Um bocadinho mais rígido...

     Não será bem uma questão de rigidez, mas talvez uma questão de pragmatismo. O conceito de ensino, com predominância de metodologias que eu rotulo de lúdicas, é uma fonte de ilusões para os adolescentes que ao tomarem contacto com as realidades da vida, que não é propriamente uma sucessão de brincadeiras, tomam consciência de terem sido defraudados e procuram, em muitas situações, terapêuticas pouco recomendáveis.
Eu continuo convencido que uma fracção significativa do insucesso escolar na Universidade é determinado pela filosofia básica da organização administrativa e pedagógica do ensino pré-universitário.
Claro que outros factores devem também ser tidos em linha de conta e que, em determinados casos pontuais ou individuais, poderão ser mesmo os de maior contribuição, nomeadamente, alguma tradição universitária relativa à apreciação curricular do estudante, no capítulo da "dolce vitae". Contudo, mais preocupantes são os factores organizativos, nomeadamente os processos envolvidos na chegada dos alunos aos cursos (não será fácil alicerçar sucesso escolar em frustrações), as dificuldades transicionais e os desajustamentos das regras de recrutamento e progressão dos docentes do ensino universitário.
Eis um exemplo. Como regra, um professor universitário satisfatório deve atingir níveis razoáveis nas facetas primordiais de investigação e ensino eficaz , actualizado e de índice formativo elevado. Ora tem sido assumido, nos processos formais de avaliação docente, como regra, que um bom investigador é um bom professor, regra que não parece nada justificada, por que os casos de fuga à regra não serão assim tão excepcionais. Em meu entender a adopção de um tal princípio tem mais a ver com as dificuldades de aplicação rigorosa das regras formais e com a estratégia defensiva dos avaliadores em obstarem à contestação das suas decisões, do que com a estratégia de optimização do corpo docente universitário.

9. Talvez agora uma pergunta em termos futuros...

     Em termos futuros e no que pessoalmente me diz respeito, tenho esperança de continuar a dar a minha colaboração à Universidade até meados de 2004, altura em que, por força de lei, serei jubilado, isto confiando que até essa data não chegue até mim a data incerta da maior certeza da vida. Em termos do Departamento de Biologia penso que atingiu uma massa crítica suficiente para poder continuar o seu desenvolvimento e dar o seu contributo às tarefas cometidas à Universidade de Aveiro. É evidente que o Departamento tem alguns problemas graves, nomeadamente um acentuado deficite do número de professores catedráticos e alguns desequilíbrios estruturais relativos à cobertura docente das áreas fundamentais da Biologia, se entendermos os cursos universitários de graduação como meios essencialmente formativos, isto é, mais orientados para ensinar a aprender do que para ensinar profissionais.
Considerando a dimensão do quadro docente da UA, a população de graduação e a fracção desta que frequenta disciplinas leccionadas pelo Departamento, a Biologia deveria comportar seis a sete professores catedráticos; ora de momento tem um. Faço votos para que este problema seja ultrapassado, pelo menos parcialmente, dentro de um a dois anos.

 

10. Agora umas perguntas mais rápidas, para ficarmos a conhecer um pouco mais o Prof. Gustavo Caldeira enquanto pessoa. Por exemplo, qual o seu livro, o seu autor preferidos?

     O meu autor preferido é desde há muito e continua a ser Eça de Queiroz. Entre os livros mencionarei o " O Crime do Padre Amaro".

 

11. E o professor gosta de cinema? Qual o filme que o marcou?

     Sempre gostei e enquanto vivi em Coimbra fui sócio do Cineclube, onde era possível ver alguns filmes excepcionais que não eram exibidos no circuito comercial . Em relação a filme marcante direi que terão sido diversos ao longo dos tempos. Assim, dos meus tempos de menino e moço recordo "O Costa do Castelo" e " O Leão da Estrela", documentos bem reveladores da pequenez política estruturante da sociedade portuguesa; já em idade bastante mais avançada não posso deixar de recordar os filmes de Ingmar Bergman, especialmente  "Morangos Silvestres", " As noites de Cabíria" de Felini, " A Janela Indiscreta" de A Hitchcok , o conhecidíssimo "Casablanca", etc..

12. E quais são as suas preferências musicais?

      Eu devo confessar que, em termos de música, fui sempre um problema, pois não tenho "ouvido" nenhum; no Liceu, o professor de canto coral mandava-me sair da sala quando havia que cantar em coro, para não perturbar a afinação dos restantes. Mas há um certo número de géneros musicais que gosto de ouvir, por exemplo, Bach e algumas das sinfonias de Beethowen. Devo dizer que não sou nada apreciador da música barulhenta. Por exemplo, por volta dos anos 63 e seguintes toda a gente delirava com a música dos Beatles e outros grupos da mesma natureza; eu nunca achei grande piada a esse tipo de delírio de origem instintiva, tal como não acho grande piada ao fadinho, independentemente da sua origem geográfica.

13. E a música como forma de comunicação. Por exemplo, na altura da revolução, os nossos autores, Sérgio Godinho, Zéca Afonso?

      Sempre gostei mais do texto e dos subentendidos por detrás das palavras ditas do que das músicas propriamente.

14. E quem é que o Professor elegeria para personalidade do século?

      Isso é muito complicado. Contudo, do século XX elegeria Einstein, pela sua capacidade de sintetizar o comportamento material do Universo, em conceitos racionais, embora possam não ser completamente exactos.

15. E, por fim, qual a sua máxima pessoal? O seu lema para a vida?

     É um velho ditado popular " Haja saúde e coza o forno".


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