Entrevista com...Prof. Jorge Rino 

Newsletter – Professor Rino... em primeiro lugar, obrigado por nos receber! O que levou um jovem de Recardães a trocar o Águeda pelo Mondego e a arrepiar caminho no mundo da Biologia e das algas? 

                  

O mundo microscópico tem, para mim, pormenores estéticos e de mistério que me levaram a abandonar por completo a Taxonomia das Plantas Vasculares, para me dedicar ao estudo das algas.

Professor Rino – Trocar Recardães por Águeda não foi uma decisão minha. Nasci em Recardães, mas quando tinha 5 anos fui viver com os meus pais para Águeda, porque o meu pai era lá comerciante. Portanto, a minha mudança de Recardães, mais propriamente de Póvoa das Laceiras (onde eu nasci) para Águeda, não teve nada a ver comigo. Fiz a escola primária em Águeda. Depois estive, até ao quinto ano do liceu, num colégio que havia em Águeda, o Colégio de São Bernardo. Como esse colégio só ministrava até ao quinto ano, fiz a parte final do liceu (sexto e sétimo ano) em Aveiro, no Liceu Nacional de Aveiro (actual Escola Secundária José Estevão), tendo-o concluído em 1958.

Nesse ano houve a grande decisão da escolha do curso que iria frequentar na universidade. Naquela altura não era como agora, não havia numerus clausus, e desde que se tivesse um elenco adequado de disciplinas (de entre os vários que davam acesso a diferentes conjuntos de cursos superiores: ciências, letras, etc.)  a que se chamavam alíneas, podíamo-nos candidatar e inscrever na universidade. A escolha de ir para Biologia prendeu-se com uma certa predilecção por essa área e com certas coisas que me faziam não ir para outros cursos. Medicina era o curso que toda a gente queria, mas nessa altura nem sempre os médicos tinham emprego no serviço nacional de saúde. Nessa época, praticamente não havia serviço nacional de saúde e os médicos eram, na maior parte das vezes, oriundos de famílias de bastantes posses, o que lhes permitia montar o consultório. Como não era o caso da minha família, a questão da medicina estava um pouco arredada. Além disso, não era assim muito do meu gosto porque doenças, sangue, etc. nunca me interessaram muito. Depois havia todos os cursos de Engenharias, Físico-Química... eu era muito bom aluno a Físico-Química, mas apenas mediano a Matemática e não via grandes hipóteses de fazer os cursos de Engenharia sem muito trabalho! De maneira que entre Biologia e Geologia, que eram os cursos que tinham menos matemática, escolhi Biologia porque tinha uma certa atracção por esta matéria.

Fui muitíssimo bom aluno na parte da Taxonomia de Vegetais Vasculares e o meu destino depois, quando fui contratado como assistente pela Universidade de Coimbra – Instituto Botânico, era ir trabalhar com plantas vasculares. Entretanto, tinha que dar as aulas que me foram atribuídas, numa disciplina em que se estudava as algas e achei-as mais interessantes que as plantas vasculares. E, contra ventos e marés, numa casa onde já não se fazia há uns anos qualquer trabalho sobre as algas de água doce (a não ser o Padre Póvoa dos Reis que trabalhava única e exclusivamente com as Rodofíceas) comecei eu a  estudar as outras algas. Gostei e fiquei! O mundo microscópico tem, para mim, pormenores estéticos e de mistério que me levaram a abandonar por completo a Taxonomia das Plantas Vasculares, para me dedicar ao estudo das algas. Podia ter continuado a estudar as plantas vasculares, pois estava numa casa como o Instituto Botânico de Coimbra, com uma grande tradição no estudo das plantas vasculares. Estavam lá o Professor Abílio Fernandes, já herdeiro do Professor Júlio Henriques, o Doutor Jorge Paiva, mais velho que eu uns anos e que já estava a trabalhar com as plantas vasculares. Eram pessoas muito qualificadas que me poderiam guiar nos primeiros passos e dar o apoio que é sempre conveniente para se encetar determinados estudos.

A última pessoa a estudar as algas tinha sido o Professor Mesquita Rodrigues, que nessa altura já não estava no Instituto Botânico de Coimbra, uma vez que tinha ido dirigir o Laboratório de Botânica da Universidade de Lourenço Marques, em Moçambique. Foi, portanto, um estudo quase feito em regime de autodidactismo. Não tinha ninguém que me ensinasse mais do que aquilo que me tinha sido ensinado nas aulas. Mas preferi isso e todas as agruras que uma situação dessas traz, a continuar nas plantas vasculares... já estava farto daquilo a que  nós chamávamos “o pasto”! Sobretudo o pasto seco, vindo lá dos confins das Áfricas, porque muitas vezes comecei a estudar a flora vascular africana!

 

N - Um pouco no seguimento da sua referência a Lourenço Marques, queríamos perguntar o que é que depois de acabar o curso, ficando por Coimbra durante uns anos, o levou a trocar o Portugal Europeu pelo então Portugal Ultramarino?

 

O  meu primeiro contrato, como assistente da Universidade de Coimbra, passou meio ano (de Julho a Dezembro) encravado na PIDE até ter autorização

Prof. Rino – Essa pergunta tem sempre pelo menos três tipos de resposta: uma que é verdade, outra que é mentira e outra que é inteligente (risos)! Porque é que uma pessoa, estando numa casa sólida, como era o Instituto Botânico, embora com as dificuldades inerentes a estar a trabalhar inicialmente sozinho, se vai embora?

A ida para Moçambique... nessa altura só conhecia as algas tropicais da bibliografia. Achava-as de facto bastante interessantes, com uma diversidade morfológica muito maior do que aquela que nós encontramos nas floras de algas de água doce das águas temperadas e das águas frias. Mas havia também os aspectos pessoais! A questão era que nessa altura, um assistente da universidade ganhava menos do que um professor do ensino secundário. Ganhava-se pouco! Eu tinha casado, tinha um filho e o ponto de vista económico pesa muitas vezes em certas decisões que temos que tomar. Os ordenados pagos nas Universidades, quer de Angola, quer de Moçambique, eram já à partida superiores para as mesmas categorias profissionais dos que os que se pagavam aqui na “metrópole”, nas Universidade de Coimbra, Lisboa e Porto. Além do vencimento base ser superior existia ainda o subsídio de investigação e mais uma série de coisas que somavam um vencimento razoável. Por outro lado, a minha mulher era de Moçambique e tinha lá família, embora já estivesse fora há uns anos. Eu podia ter dito inteligentemente que tinha sido o desafio de África! Quando fui para Moçambique em 1968, já tinha tido duas experiências de visitas a Angola e Moçambique, de um mês cada uma. Mas embora tivesse visto a vastidão dos espaços, a sensação de liberdade que se tem quando se anda por aqueles matos fora, não foi isso que me fez ir para lá. Mas não estou arrependido porque de facto as condições de vida materiais melhoraram! Gozei também outra coisa muito interessante do ponto de vista social, na convivência com as pessoas, um pouco mais abertas do que cá em Portugal... e até sobre o ponto de vista político! Vou ser politicamente incorrecto mas, já nessa altura, existiam em África os chamados movimentos de libertação, que em Portugal não eram vistos como movimentos de libertação, mas sim como terroristas, como é evidente! As pessoas como eu, que não eram afectas ao regime (embora nunca tivesse sido um membro destacado em nada) tinham, em Portugal Continental, uma vigilância bastante apertada! Basta dizer que o meu primeiro contrato, como assistente da Universidade de Coimbra, passou meio ano (de Julho a Dezembro) encravado na PIDE até ter autorização. Mesmo não sendo eu um militante activo, limitando-me inevitavelmente a acompanhar as manifestações como milhares de colegas meus! Não havia contrato nenhum para a função pública, que não passasse pela PIDE para saber se uma pessoa estava bem ou se era perigosa! No meu caso, soube mais tarde que até foi por uma cunha do Director do Instituto Botânico que se despachou o meu processo mais rapidamente.

Em África, a PIDE preocupava-se com os movimentos ditos “terroristas”, de modo que os brancos que lá estavam não eram muito incomodados, a menos que tivessem uma actividade muito notória! Podia conversar com os meus amigos, podia comprar livros lá com uma certa facilidade em certas livrarias, que aqui em Portugal só uma ou outra é que tinham, lá para trás do balcão. Havia alguma liberdade nisso... para os brancos como é evidente!

 

N – Apesar de estar em África estabelece, por intermédio do seu doutoramento, uma ponte com os mais prestigiados investigadores da sua área...   

O laboratório do Professor Bourrelly era frequentado pelos algologistas mais importantes do mundo, que iam lá expressamente para conversar, trocar impressões com ele.

 

 

 Prof. Rino – Havia uma obra sobre as algas de água doce composta por três volumes da autoria do professor Pierre Bourrelly, de Paris, e nós tínhamos recebido cópias desses livros no Instituto Botânico. Então, quando se pensava em contactos com pessoas muito ilustres no domínio da algologia e que falassem uma língua que nós entendêssemos pensava-se no Professor Bourrelly. Havia a escola Checa, a escola Alemã, que também tinha coisas muitíssimo boas, mas infelizmente a maior parte dessas publicações eram escritas em checo ou em alemão! O checo para mim totalmente desconhecido e o alemão dificilmente me permitia fazer traduções aproximadas dos textos científicos. Deste modo, já em Coimbra, expunha as dúvidas que tinha ao professor Bourrelly para que ele desse a sua opinião, tendo ele sido sempre muito simpático. Um pouco mais tarde, fiquei farto de ser autodidacta porque, embora em Moçambique, o Professor Mesquita Rodrigues que era, nessa altura, o Director do Instituto, tinha funções administrativas pelo que pouco apoio me podia dar.  Contactei, nessa altura, o Professor Bourrelly, para fazer um estágio de um ano. Tinha uma bolsa e fui para Paris, com a ideia de aprofundar bastante os meus conhecimentos. A minha intenção era ir para Paris adquirir o conhecimento para depois, cá ou em Inglaterra, fazer o doutoramento. Tinha alguns colegas em Inglaterra e sabia que lá, em três anos, se podia fazer um doutoramento! Em França as coisas eram muito mais complicadas, porque havia três tipos de doutoramento. Por outro lado, eu já conhecia a vida na Inglaterra! Na Inglaterra comia-se muito mal e bebia-se pessimamente, e apesar das boas Universidades a vivência das cidades de província não me agradava! Foi esta uma das razões que me levou a pensar que mais valia fazer todos aqueles sacrifícios e prolongar por mais algum tempo, mas estar em Paris! Lá estava no “centro do mundo” e mesmo com pouco dinheiro (como nós geralmente tínhamos) sempre comíamos bem, bebíamos o nosso café, o nosso vinho a preços aceitáveis, mesmo sem ser de muito boa qualidade. Por outro lado fui ainda apanhar o resto do Maio de 68, e embora eu, como estrangeiro, não pudesse fazer nada porque me arriscava a ser posto na fronteira, assisti lá a coisas interessantíssimas! Não apanhei verdadeiramente o Maio de 68, mas sim muitas sequelas, muita manifestação! E isto faz parte da nossa aprendizagem de estar no mundo!

Por outro lado, o laboratório do Professor Bourrelly era frequentado pelos algologistas mais importantes do mundo, que iam lá expressamente para conversar, trocar impressões com ele. Encontravam-se lá também pessoas mais novas como eu que iam fazer estágios e estudos prolongados. Nessa altura travei conhecimento com muita gente importante da algologia por uma razão muito simples! Não havia ali a privacidade que havia noutros sítios! O laboratório do Professor Bourrelly consistia num salão enorme, forrado a toda a volta por prateleiras com bibliografia; numa bancada junto às janelas que era onde estava quer o microscópio do Professor Bourrelly, quer o meu microscópio e o de outro estagiário que lá estava; numa mesa enorme ao centro e a secretária dele noutra grande mesa. Era ali que ele recebia toda a gente. De maneira que éramos apresentados, metíamos conversa, ouvíamos e isso permitiu-me conhecer muita gente! Não só franceses, mas também belgas, holandeses, indianos como o Desikachary, americanos, etc. Também alguns dos estagiários que vinham são hoje pessoas muitíssimo importantes na área da algologia! Por exemplo Preisig, um homem que muito tem estudado as Chrysophyceae e foi meu companheiro no laboratório do Professor Bourrelly. Eu estava um pouco mais adiantado do que ele, e muitas vezes o Professor Bourrelly encarregava-me a mim, e a outros que lá estavam, mais antigos, de começar a abrir os olhos e o caminho aos que chegavam.

A  bibliografia era abundantíssima, porque até à sua morte (o Professor Bourrelly morreu em 1995), não havia ninguém por este mundo de Deus fora que fizesse um artigo e que não lhe mandasse uma separata! Dez anos antes de ele falecer, em 1985, a colecção de separatas dele próprio, que estavam dentro do gabinete dele, já ia no número dezoito mil e qualquer coisa! E quando, por qualquer circunstância fosse uma obra mais antiga, que não existisse na sua colecção pessoal, então passava-se no mesmo andar para a biblioteca das separatas do laboratório do Professor Bourrelly, onde se encontrava quase tudo o que era mais antigo. Se era uma revista esquisita, descia-se desse andar e ia-se à secção das revistas periódicas. Se em nenhum desses sítios existisse o que se procurava, atravessava-se como daqui (Departamento de Biologia) ao Seminário até à grande biblioteca, onde se encontrava tudo! E numa tarde resolvia-se não sei quantos problemas bibliográficos. Mas se, mesmo assim fosse uma coisa muito esquisita, húngara, checa, russa, a secretária do professor Bourrelly punha-se a caminho e ia às embaixadas ou centros de documentação anexos e se tinham, tinham, se não tinham, passado uma ou duas semanas já lá estava! Coisas absolutamente impossíveis de encontrar, de 1920, da Rússia Soviética, e que sempre se arranjavam, através do Centro de Documentação Soviético em Paris. Facilidades que não se encontram com grande frequência por esse mundo fora.

 

N – o professor estava numa espécie de Meca da algologia...

Nós íamos ao ficheiro esgravatar, dentro daquele género, espécies mais recentes, que não vinham obrigatoriamente nos grandes tratados e nas obras de referência. Se não encontrássemos lá nada que fosse semelhante ao que estávamos a observar, podíamos com noventa e muitos por cento de probabilidade designar aquilo como espécie nova, porque ali havia tudo.

São circunstâncias, que não sendo ímpares, eram das melhores!

 

 

 

Prof.Rino – Nesse aspecto era, quer pela categoria do Professor Bourrelly, quer por toda a documentação que ele tinha. O Professor Bourrelly, durante anos, com uma paciência infinita, de todos os trabalhos dos quais ele recebia as separatas, os que trouxessem uma espécie nova, um taxon novo dentro das algas, pegava no papel vegetal, desenhava o organismo, colava o papel vegetal numa ficha, punha o nome e colocava nas gavetas respectivas, conforme o grupo taxonómico a que pertencia. De tal maneira que, quando não encontrávamos na bibliografia corrente nada parecido com aquilo que estávamos a observar, nós íamos ao ficheiro esgravatar, dentro daquele género, espécies mais recentes, que não vinham obrigatoriamente nos grandes tratados e nas obras de referência. Se não encontrássemos lá nada que fosse semelhante ao que estávamos a observar, podíamos com noventa e muitos por cento de probabilidade designar aquilo como espécie nova, porque ali havia tudo. São circunstâncias, que não sendo ímpares, eram das melhores! Existiam centros iguais, na Checoslováquia, por exemplo, mas era preciso falar checo, ou então alemão. Além disso, eram países comunistas nessa altura, e um português que fosse para países comunistas muitas vezes tinha algumas dificuldades em regressar.

Trouxe de lá muita bibliografia sob a forma de fotocópia, alguma da qual foi desaparecendo. O Professor Bourrelly também enriqueceu a minha colecção bibliográfica porque ele tinha muitos duplicados das separatas enviadas, por vezes, por vários dos autores do artigo (chegaram a ser três). Então quando já tinha esse artigo, marcava com D de duplicados, e era eu geralmente o beneficiário, durante esses anos, mesmo já em Portugal, dos duplicados. Lembro-me que alguns professores franceses, que morreram ou se reformaram, legaram todo o seu espólio bibliográfico ao laboratório. Aí fizeram uma escolha daquilo que não existia lá e sobrou muita coisa da qual fui também beneficiário. Muitos dos trabalhos eram do princípio do século XX, fim do século XIX, não quaisquer cópias, mas os trabalhos originais, às vezes autografados pelos autores, que estão aqui devidamente catalogados na minha colecção. Beneficia-se muito em estar no centro do mundo, sobretudo quando as coisas são feitas de maneira a que haja boa harmonia e que os professores sejam pessoas que estejam na disposição de ajudar os outros, como o professor Bourrelly. Era suficientemente importante para não estar a sonegar informações, porque noutros sítios nós sabíamos que os chefes nem sempre passavam todas as informações aos alunos, aos estagiários que lá tinham, com medo da concorrência. Ele era uma pessoa que não tinha medo de concorrência nenhuma, não precisava de ter medo de nada e era absolutamente franco.

 

N – Agora, prevendo já um pouco a resposta inteligente, a mentira e a verdadeira... (risos) foram as saudades da sua terra, de Portugal, que o fizeram regressar?

 

 Veio a descolonização e recusei-me (era funcionário português) a ser transferido para a administração Moçambicana, juntamente com o resto dos pertences da Universidade. Achava também que era mais qualquer coisa que uma máquina de escrever, para ser transferido para a administração Moçambicana sem mais nem menos!

 

Prof. Rino –  Também seria uma resposta inteligente essa! Logo no primeiro ano, o Professor Bourrelly propôs-me que eu concorresse a um lugar que estava vago lá em Paris, ainda estava eu ligado à Universidade de Lourenço Marques. Ele disse que não havia problema com o facto de eu ser estrangeiro. Contudo, comecei a ver mais uma  vez quanto é que se ganhava e quanto é que custava a vida em Paris com família (já eu tinha mulher e dois filhos). Nessa altura tinha havido uma greve qualquer do metropolitano por reivindicações salariais, e eu vi que o meu vencimento seria inferior ao dos funcionários do metropolitano que abriam e fechavam as portas e davam sinal para que o maquinista arrancasse! Era naquela altura em que as pessoas têm pretensões de que sendo Sr. Doutor tem que se ganhar mais do que o funcionário do metropolitano. Entretanto veio a descolonização e recusei-me (era funcionário português) a ser transferido para a administração Moçambicana, juntamente com o resto dos pertences da Universidade. Achava também que era mais qualquer coisa que uma máquina de escrever, para ser transferido para a administração Moçambicana sem mais nem menos! Não regressei a Moçambique e nessa altura já não tive a oportunidade de arranjar, em França, lugares disponíveis para eu me candidatar, e resolvi vir para Portugal. Fui requisitado pela Universidade de Aveiro e foi por isso que vim para aqui!

 

N – Nos primeiros anos da Universidade...

 

 Para estas universidades novas, foi bom o facto de ter havido uma descolonização, por um lado, depois o PREC , que evitava que os professores vindos das Universidades Africanas (Portuguesas) integrassem ou reintegrassem os seus quadros.

Muitos não se quiseram submeter ao ambiente do PREC, correndo o risco de um dia para o outro serem saneados com obrigações, como em certos casos que eu conheci, de não se poderem aproximar a menos de cem metros das instalações do Instituto Botânico!

 

Prof. Rino – Sim, a universidade tinha arrancado no ano lectivo de 74/75, e eu fiquei aqui vinculado a partir de Setembro de 75. quando vim para Aveiro. Também tive a possibilidade de ser requisitado por Coimbra, porque aconteceu que fui convidado a regressar ao Instituto Botânico, através de um convite conjunto do Conselho Directivo e da Comissão de Trabalhadores. Simplesmente, eu tinha uma casa próxima da Universidade de Aveiro, em Recardães. Na Universidade de Coimbra tinha que recomeçar a vida inteiramente do zero. Aí está a resposta prática.

Foram poucos os casos em que o pessoal das Universidades de Lourenço Marques e Luanda foram convidados a regressar aos seus locais de origem, porque em 1975 ainda estávamos em pleno PREC, o Processo Revolucionário Em Curso, e tudo quanto vinha de África era no mínimo fascista! Houve muitos professores que vieram das Universidades das ex-colónias Africanas que tiveram que emigrar para o Brasil, porque nas Universidades de origem não os quiseram e não tiveram oportunidade, ou não quiseram ir para as universidades que estavam a nascer, como as Universidades de Aveiro, Évora ou Minho. Estas universidades receberam muitas pessoas  altamente qualificadas, vindas das Universidades de Angola e Moçambique! Para estas universidades novas foi bom o facto de ter havido uma descolonização, por um lado, depois o PREC , que evitava que os professores vindos das Universidades Africanas (Portuguesas) integrassem ou reintegrassem os seus quadros. Muitos não se quiseram submeter ao ambiente do PREC, correndo o risco de um dia para o outro serem saneados com obrigações, como em certos casos que eu conheci, de não se poderem aproximar a menos de cem metros das instalações do Instituto Botânico! Muitas vezes essas medidas não tinham ponta séria por onde se lhe pegasse. Havia de certeza maus professores que foram saneados, mas também foi saneado pela mesma medida muito bom professor que nunca tinha pactuado com o regime anterior e que eram pessoas respeitadas cientificamente. Por vezes bastava, numa assembleia mais excitada, alguém propor o seu saneamento, que era quase sempre aceite. Portanto, vim aqui parar a Aveiro mais uma vez por questões de carácter fundamentalmente económico e de bem estar.

 

N – Sabemos que o seu percurso na Universidade e no Departamento foi longo e variado, podia falar dele em linhas gerais?

 

 O governo português da época, quando criou as Universidades de Angola e Moçambique, quis demonstrar ao mundo que Portugal era um país uno, do Minho a Timor, e que tinha universidades nas suas províncias ultramarinas mais importantes, como Angola e Moçambique, que podiam rivalizar com qualquer universidade africana.

Se pensarmos quais eram as concepções que tínhamos para um Departamento de Biologia em 1975, e as concepções de um Departamento de Biologia em 2000, são totalmente diferentes.

 Tudo levou uma volta enormíssima  nos aspectos científicos. Quando dizem: fizeram isto, fizeram aquilo... mas era o que se fazia na época, era o espírito na época, eram os conhecimentos da época, eram os objectivos da época e era o dinheiro da época!

 

Prof. Rino – Participei na construção desta casa, em época de balizas às costas – nos princípios do século XX, não havia campos de jogo e eram os próprios jogadores que levavam as balizas para um terreno qualquer para fazer um campo para jogar a bola. Era o tempo das balizas às costas! Passámos por todas as dificuldades, de organizar biblioteca, de organizar laboratórios, com pouco dinheiro. Embora se soubesse mais ou menos o que é que se queria, embora houvesse pessoas perfeitamente lúcidas, não havia o dinheiro para o arranque de uma universidade, como houve para o arranque da Universidade de Lourenço Marques - falo nessa porque a conheço bem - que cresceu imenso e se dotou de equipamentos e bibliografias importantes em poucos anos, porque tinha muito dinheiro – o governo português da época, quando criou as Universidades de Angola e Moçambique, quis demonstrar ao mundo que Portugal era um país uno, do Minho a Timor, e que tinha universidades nas suas províncias ultramarinas mais importantes, como Angola e Moçambique, que podiam rivalizar com qualquer universidade africana. E é certo que, tirando as Universidades da África do Sul, e uma ou outra universidade argelina, do tempo dos franceses, sem dúvida nenhuma que a universidade de Lourenço Marques, de Moçambique, e a Universidade de Angola, eram muitíssimo boas. Os meus colegas aqui de Coimbra, do Porto e de Lisboa, invejavam os equipamentos que tínhamos na Universidade de Moçambique!

No início, aqui em Aveiro, enfrentámos muitas dificuldades! A única vantagem que tínhamos era que a maior parte do pessoal docente era já muito experiente, não estava a nascer para a profissão aqui. Vinham de outros sítios, muitos de nós com experiência de organização, que tivemos nas Universidade de Lourenço Marques, em que éramos chamados (mesmo jovens assistentes como eu) a participar em aspectos administrativos, em projectos de desenvolvimento. Sabíamos as regras do jogo para se adquirirem equipamentos, sabíamos como é que se fazia um concurso, tínhamos todos já um certo nível de qualificação, razoável nesses aspectos, fora da prática estritamente científico-pedagógica. O nosso primeiro director aqui do Departamento de Biologia, tinha sido o fundador do laboratório de botânica da Universidade de Lourenço Marques, Mesquita Rodrigues, que depois foi aqui reitor. O falecido Dr. Ângelo Pereira, que veio aqui para o herbário, já tinha organizado a partir do zero um herbário em Moçambique... As coisas não correram como na nossa experiência africana, porque havia a menos do que isso, o dinheiro. Como é evidente, se pensarmos quais eram as concepções que tínhamos para um Departamento de Biologia em 1975, e as concepções de um Departamento de Biologia em 2000, são totalmente diferentes. Tudo levou uma volta enormíssima  nos aspectos científicos. Quando dizem: fizeram isto, fizeram aquilo... mas era o que se fazia na época, era o espírito na época, eram os conhecimentos da época, eram os objectivos da época e era o dinheiro da época! Não havia os fundos comunitários! Nada, nada, nada! Não havia programas Ciências, não havia Praxis, não havia nada disso. Era o orçamento geral do estado, ali sem mais nadinha e numa época de muitos apertos.

Tínhamos, portanto, gente com experiência! Sabíamos as leis para a parte administrativa, sabíamos as leis para a parte docente, os estatutos que havia na época - e daí eu ter sido durante muitos anos coordenador da comissão científica, ter passado por mais do que uma vez pelo Conselho Directivo, ter sido eleito primeiro para secretário do Conselho Científico, depois para Vice-Presidente do Conselho Científico, membro do Senado e da Assembleia por inerência dos cargos de direcção que tinha aqui no Departamento. Como era uma pessoa mais ou menos entendida em certos aspectos legais como amador, muitíssimas vezes designado pelo senhor reitor para presidir a comissões eleitorais, para a eleição do reitor, para eleições do senado, a última actividade que eu tive do tipo administrativo foi as negociações para a integração do ISCA na Universidade de Aveiro – que demoraram mais de um ano... em comissões desse género, portanto aproveitando a experiência que tínhamos quer no aspecto de organização, o que nos valeu imenso quando foi por exemplo o programa Ciência. Quando era preciso fazer concursos públicos internacionais para fornecimento de equipamentos, quando foi da construção deste edifício, todo o aspecto das aquisições para mobiliário, para re-equipamento, tudo isso passou pelas minhas mãos. Porque eu sabia como é que se faziam os concursos internacionais, obrigatórios devido ao financiamento comunitário. Os modelos dos concursos internacionais de fornecimento de equipamentos e de mobiliário, os primeiros, foram elaborados por nós (por mim, pelo Dr. Aristides Hall e pelo Sr. Ulisses), com base nas directivas comunitárias e de tal maneira tiveram sucesso que nunca foram impugnados pelo tribunal das comunidades, nem pelo Jornal Oficial das Comunidades e várias universidades pediram autorização para seguirem os nossos modelos de concursos. A Universidade do Minho, a Universidade do Porto, por exemplo, escreveram-nos a pedir se podiam utilizar os nossos modelos, porque não havia transposição para a legislação portuguesa dessas normas – embora até já tivessem expirado os prazos legais!

Uma universidade não pode ser só um conjunto de professores e de investigadores. Tem que ter um apoio técnico forte. Nessa altura a universidade não tinha um jurista! Havia um advogado cá da terra, que tinha uma avença com a Universidade de Aveiro, e a quem nós íamos pedir um parecer, um conselho acerca de um determinado problema legal, quer fosse na gestão dos docentes, quer fosse na gestão administrativa, etc. Muitas vezes éramos nós, docentes, que com alguns conhecimentos, com algum bom senso e com o apoio desse advogado que nos servia de consultor, que fomos também fabricando grande parte desta estrutura, quer nos aspectos administrativos, quer nos aspectos regulamentares do funcionamento do Conselho Científico, tudo isso foi tudo arrancado das nossas cabeças. Bem ou mal, a maior parte das vezes bem, sem críticas, sem poder ser impugnado, arrancado das nossas cabeças. O actual regulamento para eleição do reitor aqui, na casa, fui eu mais duas pessoas que os fizemos! Um representante dos estudantes e um representante dos funcionários, embora depois com uma supervisão de um jurista para dar aquilo um aspecto mais bonito, com uma terminologia mais floreada, de caracter jurídico. Portanto, participei em muitos desses aspectos da parte administrativa. Roubou-me muito tempo, muitos meses de trabalho, em que toda a parte de investigação ficou até certo ponto para segundo plano, arredada... depois uma pessoa paga sempre essas coisas, não é?! No aspecto das aulas era intransigente, nunca faltei a uma aula a não ser por motivo de doença (e só de doença complicada), dei sempre os meus testes na hora marcada, no dia marcado, apresentei sempre as notas dentro dos prazos, mas houve muitas épocas em que as tarefas de natureza administrativa que desempenhava, praticamente só me permitiam dar as aulas e fazer as provas de avaliação. De resto a parte de investigação ficou muitíssimo desprezada durante muitos anos.

 

N – O professor é então muito afecto a registos! Constou-nos que, enquanto docente, deixou marcas na comunidade estudantil, como referência mas também pelo ambiente particular das suas aulas e por este hábito dos registos. O que é que lhe apraz dizer da famosa Bíblia dos Horrores?

 

O Museu dos Horrores!  

 

N - E de algumas siglas que o professor usava na correcção dos testes...

 O Museu dos Horrores é uma recolha que fui fazendo ao longo dos anos de respostas que mais do que erradas, eram disparatadas, demonstravam falta de senso!

Tive alunos que tratavam o vácuo como uma substância! Houve alunos que interpretaram que se tirava o ar e se metia o vácuo (na coluna do microscópio electrónico)!

Era na correcção deste tipo de respostas que colocava uma dessas siglas, talvez V.N.S. – Virgem Nossa Senhora, T.I. - Tanta Ignorância, L.S.D. – Louvado Seja Deus, S.I. – Santa Ignorância...

 

 

Prof. Rino – O Museu dos Horrores é uma recolha que fui fazendo ao longo dos anos de respostas que mais do que erradas, eram disparatadas, demonstravam falta de senso! E eram fundamentalmente os disparates que revelavam não só falta de sabedoria, falta de conhecimento sobre um ponto específico da matéria, mas um desconhecimento total! Já ouviram falar nos auxósporos, nos estatósporos? Havia certas pessoas que interpretavam estas estruturas não pelo conjunto da palavra e que pensavam que estatósporos eram poros! Quando há gente que põe uma célula, cujo núcleo tem 17 cromossomas, a sofrer meiose e que depois cada uma das células têm núcleo com 8,5 cromossomas... Isto revela qualquer coisa mais do que a ignorância sobre qualquer ponto da matéria! Se eu perguntasse: quantos cromossomas tem a Cladophora glomerata na sua fase diplóide? Podia dizer: não são nada 42, são 44! Isso não é um erro de metodologia, agora dizer que tem oito e meio! Por exemplo, o vácuo... Tive alunos que tratavam o vácuo como uma substância! Houve alunos que interpretaram que se tirava o ar e se metia o vácuo (na coluna do microscópio electrónico)! Era na correcção deste tipo de respostas que colocava uma dessas siglas, talvez V.N.S. – Virgem Nossa Senhora, T.I. - Tanta Ignorância, L.S.D. – Louvado Seja Deus, S.I. – Santa Ignorância...

Alunos que vinham perguntar: “Sr. Dr., há sebenta?” “Não, não há sebenta!” “Então qual é o livro?” Muitas vezes quando estava bem disposto, dizia: “Olhe, o livro por definição é a Bíblia, que em grego quer dizer livro. Quando os judeus ortodoxos falam do livro, é a Bíblia, o Antigo Testamento, é O Livro. A senhora veja que o sumário traz sempre a bibliografia utilizada naquela aula...” “A quê?!” Não tinham o conceito de bibliografia! Perguntas destas fazem sempre lembrar daquela dos Malucos do Riso, na farmácia quando a farmacêutica pergunta: “O seu receituário”  e ele responde “O quê?” “A bibliografia está ali afixada depois de cada aula” “A quê?” “Ó minha senhora, nos sumários, nunca foi ver os sumários?” “Ah, eu não!” Tínhamos alunos que nunca foram ver os sumários, nem sabiam do que é que eu estava a falar quando falava em bibliografia!

Tive respostas a partir do contraste de fase que são muito interessantes porque são muito parecidas com aquele filme com o António Silva, O Costa do Castelo, quando põe o rádio a tocar: “Isto liga-se à parede, e é uma torneira a deitar música (dizia o António Silva).” Depois o rádio faz uns ruídos e ele diz “a onda bate e recua. Quer passar, mas não pode. Tem o carburador frio, ainda!” Tive respostas sobre o microscópio de contraste de fase que são autenticamente a conversa do António Silva: “porque a onda batia...”

O outro dos meus registo é de Maneiras novas de escrever palavras antigas e outras novidades notáveis... que são os erros de ortografia acumulados e que fui sempre registando ao longo desses anos todos.

 Houve aí uma senhora ou um cavalheiro, já não me recordo, que escreveu o nome de um composto químico que é difícil fazer mais erros! Escreveu "Hiudeto de Putacio"

 

 

[Tira o envelope do Museu dos Horrores e lê ao acaso] Alguns exemplos do Museu dos Horrores: as algas podem ter cloroplastos esmerelados, a teoria simótica da origem das mitocôndrias (devia ser a teoria simbiótica...), os mitorribossomas diferem dos plastorribossomas, pelos seus ribossomas, a celulose é um regulador da fluidez das membranas biológicas (as membranas das células carregadas de celulose... até se faz papel delas, da membrana celular!), as célula diferenciadas possuem poucos vacúolos e as células meristemáticas possuem pseudovacúolos ( pseudovacúolos são coisas típicas das cianobactérias, etc), a epiderme é uma barreira entre o cilindro central e o meio externo, os oxissomas têm um composição exclusivamente química – vejam lá se isto faz sentido, se não merece ir para a parede, para o arquivo! A orientação das cristas das mitocôndrias (que são orientadas de diferentes maneiras conforme o tipo de seres a que pertencem) é perpendicular ao RNA! Louvado seja Deus! Tenho aqui todos os nomes e datas! Há o  caso de uma senhora que aos estomas chamava estromas! “Os estromas são estruturas que apresentam células de guarda” E tudo isto aqui aos molhos que depois fui pacientemente passando para o computador e que fez esse arquivo do Museu dos Horrores. Este é só um dos envelopes que guarda os papelinhos!

Maneiras novas de escrever palavras antigas [Tira outro envelope] Primeiro fascículo, segundo fascículo, terceiro fascículo, quarto fascículo e depois mais avulsos. Eram coisas de facto, maneiras de escrever assim um pouco fora do vulgar. Houve aí uma senhora ou um cavalheiro, já não me recordo, que escreveu o nome de um composto químico que é difícil fazer mais erros! Escreveu "Hiudeto de Putacio". Onde é que vou arranjar mais erros? Iodeto não pode ter mais erros! Um “H” onde ele não existe e um “u” onde estava o “o”! Potássio, trocar o “o” por um “u” e os dois “s” por um “c”, onde é que se pode por mais erros nisto? É um record! Nome de um composto com duas palavras, Iodeto de Potássio, em duas palavras, quatro erros! É preciso um certo “savoir faire”, não é?”

 

N - Fazendo uma retrospectiva, quem recorda como uma referência de toda uma vida?

 

O Padre Póvoa dos Reis, que era uma pessoa que devia  ser um modelo para toda a gente do trabalho desinteressado. Era um amador extremamente erudito das algas vermelhas, as rodofíceas de água doce, que fazia isso como um complemento à sua actividade – era professor do seminário, capelão do seminário, etc.

Toda a gente que se mete nos trabalhos de investigação devia ter aquela vontade, aquela simplicidade, aquele entusiasmo e aquele desinteresse!

 

Prof. Rino – Como meu professor na Universidade, não era o melhor cientista, mas foi o melhor professor que eu tive, foi o Professor José de Barros Neves. Professor excelente! Juntamente com um professor que tive em física, o Doutor Luís de Melo Vaz de Sampayo. Dois professores excelentes com os quais aprendi muito. Do Dr. Sampaio, muita da metodologia de ensino dentro do tipo de ensino expositivo (da altura), com o professor Barros Neves, também a maneira de dar as aulas, desprovido daquele formalismo que era muito frequente no tempo. Ao nível de colegas, lembro três colegas que marcaram o meu arranque na investigação, o Dr. Jorge Paiva, pelo entusiasmo que tinha com os trabalhos de campo, o Dr. Ângelo Pereira, também pelos trabalhos de campo e companheiro de trabalho e que muito me auxiliou, e o Padre Póvoa dos Reis, que era uma pessoa que devia ser um modelo para toda a gente do trabalho desinteressado. Era um amador extremamente erudito das algas vermelhas, as rodofíceas de água doce, que fazia isso como um complemento à sua actividade – era professor do seminário, capelão do seminário, etc. Toda a gente que se mete nos trabalhos de investigação devia ter aquela vontade, aquela simplicidade, aquele entusiasmo e aquele desinteresse! Ele não ganhava nada com aquilo a não ser a sua satisfação pessoal! Era uma pessoa que ao contrário de muitas outras, que são orgulhosas, vaidosas e puxam dos seus galões “Eu é que sou, Eu sei!”, mesmo quando é verdade... Mas que estão sempre a fazer sentir “Eu é que sei”... O Padre Póvoa sabia imenso, imenso, imenso... era uma pessoa com uma extrema modéstia que dizia: “Ah, não, vamos lá ver...” ou “Não sei, vou escrever ao professor Henrich Scuia que esse é que sabe” etc. Embora muitas vezes, o professor Skuja lhe escrevesse a pedir a opinião dele! O professor Bourrelly quando o Skuja já estava muito velho, lá em Paris, encarregava-me muitas vezes, de escrever ao Padre Póvoa, de mandar amostras, a pedir uma opinião. Assisti muitas vezes, lá em Paris, onde apareciam colegas, alunos, pessoas de outras Universidades com o Batrachospermum, para o professor Bourrelly dar a sua opinião e ele dizia “Não, não, escreva ao Padre Póvoa dos Reis!” E muitas vezes era eu até que me encarregava de estabelecer os contactos com o Padre Póvoa dos Reis. Uma pessoa altamente competente, e que não se prevalecia disso para se tentar sobrepor a alguém, para atropelar alguém! Depois, mais tarde, depois dessa formação básica inicial, estive em Moçambique, e como já referi, foi o professor Bourrelly, de quem fui discípulo (ao que diziam, um dos discípulos por quem ele tinha mais consideração) que me influenciou muitíssimo relativamente aos aspectos profissionais.

 

N – Já abandonou a carreira docente há algum tempo... gostaríamos de saber quais são os seus desafios, projectos actuais, em termos de investigação.

 

Deixei a parte docente activa por cansaço, fundamentalmente cansaço físico, problemas de saúde, e por outro lado também por cansaço psicológico de já não suportar ter que repetir tantas aulas, tanta coisa, tantos alunos. Já não conseguia receber 100 alunos de cada vez!

 Depois também cansaço e desilusão sobre certos rumos que tem levado a Universidade de Aveiro, idênticos, aliás, à de outras universidades portuguesas, coisa que, na minha mentalidade assim já um bocado antiquada, fundada no trabalho intenso de professores e alunos, sem estarem (sobretudo professores ) à espera de serem recompensados por ou de ganharem mais aquele concurso, ou de ganharem mais aquele projecto.

A sociedade mudou profundamente, isso já não é assim, eu não me adaptei!

 

Prof. Rino – Lá está outra vez o problema das respostas verdadeiras, inteligentes e falsas! Muitas coisas quer por uma razão ou por outra, não fiz durante o tempo em que estava no activo, tais como... desde meados dos anos oitenta, que comecei a fazer um guia para identificação dos géneros das algas de água doce mais frequentes cá para Portugal, em língua portuguesa, com chaves, etc. Comecei-o, as chaves ficaram prontas em menos de um ano, e estou agora na fase de ilustração. Passaram-se quase vinte anos! Ainda não perdi a esperança de o fazer! Era um trabalho que trazia atravessado. Depois, outros projectos que tinha, melhor dizendo, que não eram dos meus objectivos principais, mas que agora depois de aposentado, chegou altura de concretizá-los... juntamente com a Dr.ª  Cândida Gil, também na condição de aposentada, especialista competentíssima na parte das diatomáceas, tínhamos materiais de diatomáceas de certas zonas do país em abundância. Resolvemos melhorar o equipamento óptico no âmbito da Unidade de Investigação, dotar-nos daquilo de que melhor se faz em microscopia para aproveitar as competências da Dr.ª Cândida Gil sobre diatomáceas, alguma habilidade minha para fazer fotografias ao microscópio, para fazermos esse trabalho. Eu que comecei a fazer isto quase que como fotógrafo, até já aprendi alguma coisa de diatomáceas!

Deixei a parte docente activa por cansaço, fundamentalmente cansaço físico, problemas de saúde, e por outro lado também por cansaço psicológico de já não suportar ter que repetir tantas aulas, tanta coisa, tantos alunos. Já não conseguia receber 100 alunos de cada vez! Depois também cansaço e desilusão sobre certos rumos que tem levado a Universidade de Aveiro, idênticos, aliás, à de outras universidades portuguesas, coisa que, na minha mentalidade assim já um bocado antiquada, fundada no trabalho intenso de professores e alunos, sem estarem (sobretudo professores) à espera de serem recompensados por, ou de ganharem mais aquele concurso, ou de ganharem mais aquele projecto. A sociedade mudou profundamente, isso já não é assim, eu não me adaptei! Tudo isso fez com que eu me reformasse, desde que tive legalmente a oportunidade de passar à aposentação - embora muitas vezes tenha pena, porque eu sempre tive, salvo raríssimas excepções, bons relacionamentos com os alunos. O pior seria a indiferença. Acho que é muito vantajoso, para uma pessoa na casa dos 60, como eu, ter contacto directo, pessoal, com as novas gerações. Sempre pude compreender bastante bem os meus filhos quando tinham a vossa idade, ou mais novos, porque lidava aqui com pessoas da mesma faixa etária, com os mesmos problemas, e sabia que aquilo que acontecia em casa, não era por eles serem excepcionais, quer para o bem quer para o mal (tanto quanto é possível um professor no contacto com os alunos saber)... como é que pensam, como é que não pensam... Na parte de investigação, como ainda não estou completamente chalado da cabeça, achava que era muito desperdício ter uma boa bibliografia, ter bastantes equipamentos adquiridos muitas vezes graças a grandes sacrifícios de outras coisas, e passar o meu tempo no café - até porque os cafés a maior parte das vezes da parte da tarde são muito aborrecidos, têm muita gente, que fazem muito barulho, e naqueles cafés com pouca frequência, o café é fraco. Encontrar um café com bom café e sossegado, é um bocado difícil a muitas horas do dia. Achava que era um desperdício gastar o tempo a olhar para o ar! Não considero isto uma maneira de passar o tempo, mas uma maneira de concretizar certas coisas, enveredar pelos novos caminhos... eu até há alguns anos atrás nunca pensaria que pudesse ser um bom fotógrafo de microscópio e actualmente, sem estar cá com falsas modéstias, posso considerar-me um bom fotógrafo de microscopia! Nunca pensava eu ir adquirir equipamentos para ter em casa, meus, scanner de alta resolução, computadores de alta potência para digerir rapidamente imagens de 25 – 30 Mb, embrenhar-me em programas de tratamento de imagens como o Photoshop - embora saiba muito pouco daquilo, uma coisa de autodidacta... Continuo a comprar revistas sobre fotografia digital, apesar de não termos dinheiro para comprar câmaras digitais, que satisfaçam certo tipo de trabalho que nós fazemos, como eu costumo dizer, “observar bicos de alfinetes”.

A Paleolimnologia é, por outro lado, uma área que me interessava bastante: a reconstrução dos climas, etc. Para a paleolimnologia, ninguém melhor do que nós (a nossa unidade de investigação é mista, tem pessoal da Geociências) com os geólogos para traçar perfis, sondagens, fazer as carotagens, trazer aquilo tudo cá para fora, análises de sedimento, e nós aqui [da Biologia] para estudarmos as escamas, os quistos, os estatósporos, as diatomáceas... Por circunstâncias várias, e depois de ter acumulado muita bibliografia e muita coisa, não andou, encravou! Apesar disso continuo a comprar livros a propósito dos quistos e de paleolimnologia. São vícios que se vão tendo e que não são propriamente desafios! Desafios exactamente são esses, de fazer alguma coisa com determinado nível, sem grandes pretensões de estar a descobrir a roda, que já está descoberta há muito tempo...