1. Podemos começar por dar a conhecer
às pessoas o que o professor fez. Qual o ano da sua graduação
e qual o seu percurso antes de chegar à Universidade de Aveiro?
Prof. : Concluí
a licenciatura em 58, depois estive uns anos no serviço militar (risos)
e comecei a carreira académica propriamente em 63. A minha carreira académica
foi feita, fundamentalmente, na então, Universidade de Lourenço
Marques, doutorei-me em 1970 e depois fiz o concurso para associado e agregação
em 75, em Fevereiro de 75.
E
concorreu logo para a Universidade de Aveiro?
Prof.: Não.
Ainda na Universidade Lourenço Marques, que na altura era feita pelas
regras portuguesas, era portuguesa, e, portanto, tinha o concurso geral das
Universidades Portuguesas. Aliás, a maior parte dos professores que constituíram
o júri eram todos daqui, nem lá havia... estavam todos aqui, tinham
vindo fazer parte da comissão instaladora da Universidade de Aveiro.
Era o Prof. Ernesto [João Ernesto Rodrigues - 2º Reitor da U.A.]
e outros... Enfim, três já morreram, mas eram todos da Universidade
de Coimbra ou de Lisboa.
E depois, logo em
75, quando foi a independência de Moçambique, eu ainda lá
fiquei um mês. Isto foi em Junho e eu só vim em Agosto, a pedido
da reitoria, que já era da FRELIMO. Toda a gente se veio embora, estava
lá sem absolutamente ninguém que percebesse alguma coisa da Universidade
e pediram-me para lá ficar, até publicarem uma revista que comemorava
a independência de Moçambique, e eu fiz-lhes a vontade. Eles comprometeram-se
e pagaram-me a viagem. Até porque o governo português disse que
não pagava a viagem a ninguém que ficasse lá depois do
25 de Abril. E eu pus-lhes o problema:
-"Como
é que é isto, e a minha família?"
-"O
professor não se preocupe que a gente arranja-lhe o dinheiro para fazer
a viagem!"
-"Pronto,
se me garantem isso..."
De maneira que vim
para aqui em Agosto de 75. Apresentei-me aqui (na Universidade de Aveiro), logo
depois que fui requisitado, em meados de Setembro de 75, na altura em que a
universidade se resumia a ter uma reitoria ali, onde é hoje uma residência
feminina, na Mário Sacramento e havia uns gabinetes e um bar num edifício
que tinha sido emprestado, que é hoje o CET [actual PT Inovação].
Funcionava tudo aí. Éramos uma meia dúzia de pessoas, estava
tudo nos primórdios. O único curso que abriu, nesse ano em Outubro,
foi um bacharelato em Electrónica, já com tudo a funcionar!...
No ano seguinte é que abrimos mais bacharelatos: um em Ciências
da Natureza e outro em Ambiente. Foram os primeiros cursos que começaram
a funcionar na área que envolve a Biologia.
2. Nós sabemos, também porque
o professor comenta nas aulas, que ajudou a fundar esta Universidade, que foi
uma das pessoas que esteve aqui desde o início. Como ocorreu o processo
de fundar um Departamento de Biologia e a necessidade de criar o curso de Biologia.
Prof.: Bem, isto
inicialmente não era um Departamento. Quer dizer, inicialmente isto era
um grupo de pessoas. Quando cá cheguei, o Professor José Ernesto
já tinha arranjado colaboradores, que tinham vindo, quase todos, de Lourenço
Marques. Era a Cândida Gil, a Cândida Pereira , a Helena Moreira
e o Rino, que ainda não estavam doutorados e, portanto, foram mandados
fazer o doutoramento. Depois vim eu, entretanto a minha mulher, e foi começar
exactamente por esse núcleo de base, sendo recrutado depois o resto do
pessoal.
Nos primeiros dois
anos, as disciplinas que funcionaram foram só aquelas disciplinas de
carácter muito geral, para as Ciências da Natureza e para Ambiente.
Havia uma Botânica Geral, uma Zoologia Geral, uma Fisiologia que era cadeira
única... E foi o que funcionou! As licenciaturas, propriamente, só
foram propostas em 1978/79. Primeiro, uma licenciatura em Biologia e Geologia,
pois passaram o bacharelato em Ciências da Natureza a licenciatura em
Biologia e Geologia. A licenciatura em Biologia, propriamente, só foi
proposta em 82, porque inicialmente não havia quem desse as disciplinas
e, mesmo assim, eu cheguei a leccionar uma colecção delas! Tive
anos, e não foi só um nem dois, foram vários, em que tinha
três disciplinas no 1º semestre e três disciplinas no 2º
semestre! Microbiologia, Genética, a Fisiologia Vegetal... ainda cheguei
a dar Ecologia! E depois eram as cadeiras para a Eng. do Ambiente: a Biologia
do Tratamento de Efluentes, que era uma cadeira semestral. Portanto, aguentei
isto tudo durante vários anos! Várias gerações que
passaram por aqui tinham que fazer comigo estas cadeiras todas.
3. Qual é que pensa que foi a aceitação
da comunidade científica nacional e internacional da Biologia, aqui em
Aveiro?
Prof.:
Na altura, inicialmente, é evidente, parece-me que foi relativamente
bem aceite. Embora não tenha havido assim muita inovação.
O curso de Biologia, o primeiro currículo que tinha, era muito parecido
com o que havia nas outras Universidades. Era muito idêntico, aliás,
ainda hoje não é muito diferente. Há a tradição
do ensino da Biologia muito naturalista. Eu nunca concordei muito, fui sempre
alérgico a este tipo de biologia muito naturalista. Não é
a minha formação base, quer dizer, começa por aí:
eu nunca me dei bem com as aéreas da Sistemática, da Taxonomia,
quer dizer, não são áreas que me agradem! Daí, que
tentasse sempre, um pouco, que a Biologia fosse um pouco mais para a Biologia
Funcional. Quando eu frequentei a Biologia, em Coimbra, nessa altura chamava-se
Ciências Biológicas, e cadeiras de Fisiologia não tínhamos.
Fisiologia não havia! Era, fundamentalmente, uma Biologia quase à
Lineu. Mas eram todas as Universidades assim.
4. Então, em que é que acha que
esta Universidade foi inovadora?
Prof.: A primeira
inovação ocorreu ainda antes de existir a Universidade de Aveiro,
em 1964. Houve uma reforma geral dos currículos e, nessa altura conseguiu-se
introduzir as Fisiologias. Eu era do movimento que pressionou fortemente para
que isso acontecesse. E, na altura, era só assistente, mas havia mais
colegas que pressionaram nesse sentido. Portanto, lá alterámos
isto, porque, quando comparávamos com o que se fazia lá fora,
até nos sentíamos, enfim, um pouco rurais! Em toda a parte já
se fazia uma Biologia mais para o lado do funcional, mais do que se fazia em
Portugal, que era estritamente na área da Morfologia, da Taxonomia e
da Sistemática e não se passava disso. Na altura da criação
do curso, só se alteraram o nome das disciplinas. Os Cormófitos
ainda são dessa altura....
De maneira que,
a partir daí, o Departamento foi crescendo, vieram pessoas novas, e,
sobretudo, passou haver outros meios,
porque inicialmente, as próprias doações que a reitoria
podia dar eram relativamente baixas, quer dizer, nós fazíamos
uma ginástica doida para comprar os produtos químicos, os corantes...
era uma coisa aflitiva, e, em muitas situações, eu tive que recorrer
a dinheiro que era de projectos de investigação, para acudir às
aulas práticas! Porque houve anos em que não havia praticamente
verbas para funcionar. O dinheiro era quase todo para pessoal. Isto aconteceu
até por volta de 87/88. Na altura, já tínhamos um financiamento
do centro do INIC, onde íamos buscar algum dinheiro que também
usávamos para as aulas.
5. Fiquei com curiosidade em lhe perguntar...
Hoje em dia, o que é que um aluno que venha para a Universidade de Aveiro
espera de diferente? O que é que faz a diferença entre estudar
em Aveiro e, por exemplo, estudar em Coimbra?
Prof.: Depende muito
da área que escolha. Em Coimbra há uma compartimentação
da Biologia em quatro departamentos diferentes: Botânica, Zoologia, Antropologia
e a Bioquímica, e, portanto, como hei-de dizer, maiores possibilidades
de se especializarem em áreas relativamente mais diversificadas. E haverá,
talvez, um maior número de áreas. Por exemplo, nós nunca
tivemos aqui Antropologia, nunca existiu aqui em Aveiro e poderá ser
umas das possibilidades em Coimbra. No resto, não vejo assim... Bem,
na área da Bioquímica também não é aqui muito
desenvolvida, estará agora a começar a tentar expandir-se aqui
no Departamento. Mas em relação à estrutura curricular,
os cursos não são muito diferentes... o conteúdo das matérias
é muito idêntico. Eles talvez tenham menos Ecologias do que aqui.
Por outro lado, têm duas disciplinas de fisiologia em cada área:
animal e vegetal, aqui só há uma de cada.
A diferença
está nas condições que os alunos têm para trabalhar?
Prof.: É.
Aí poderá haver algumas diferenças. E depois na parte terminal
do curso, em que lá [em Coimbra] há mais dispersão. Como
têm numerus clausus parecidos ficam com mais possibilidade talvez, mas...
não vejo outra diferença. Em relação às estruturas
laboratoriais, parece-me que são perfeitamente equivalentes, o que existe
num lado existe no outro, não há assim grande diferença,
mesmo com outros sítios.
6. E a nível internacional, como é
que o professor acha que a nossa Universidade é vista lá fora?
Prof.: Eu penso
que está relativamente bem cotada. Em termos de investigação
até é capaz de estar melhor do que as outras.
Em termos de investigação,
quando se vê os papers publicados nas revistas internacionais, a Universidade
de Aveiro até aparece, comparando com as antigas, relativamente bem,
apesar de muitas vezes não ter os meios, nem... enfim... Embora eles
digam o contrário, que a Universidade de Aveiro tem sido beneficiada
nas verbas para a investigação, eu não sei porquê!
O sucesso tem outra razão. Normalmente, a Universidade de Aveiro tem
um sistema de gestão, que lhe tem permitido concorrer e ganhar os concursos,
porque tem sempre as continhas feitas em dia e os outros, normalmente, não
têm uma contabilidade tão apurado, um sistema de gestão
tão eficaz. Nisso até concordo quando os outros reitores se queixam
que a Universidade de Aveiro, por vezes, é beneficiada. Não é
beneficiada por ninguém, quer dizer, é uma questão dos
concursos. E quando vêm os avaliadores internacionais acham que aquilo
está relativamente bem feito e, portanto, poderá haver, tem havido
aí algumas vantagens, em algumas áreas e, portanto, em termos
de financiamento. Está claro que, depois, como a massa cinzenta é
equivalente em toda a parte, é uma questão das melhores condições.
A Universidade tem também, talvez, uma outra vantagem: é uma menor
dispersão de pessoas. Porque, pelo menos em certas áreas em Coimbra,
a dispersão é relativamente grande.
Aqui as pessoas acabam por tomar contacto com
outras áreas mais cedo...
Prof.: Aqui é
mais favorecida a interdisciplinaridade, este tipo de organização
em Campus, embora por Departamentos. Por outro lado, por permitir condições
mais favoráveis para ser praticada, nem que seja em termos empíricos,
a interdisciplinaridade. Porque em termos rigorosos cientificamente, a interdisciplinaridade
é um pouco difícil, sobretudo na investigação. Aqui
há uma coisa que as pessoas se esquecem: é muito fácil
falar em constituir equipas com investigadores de
várias áreas, mas depois esquecem-se do individualismo típico
dos docentes universitários e, por isso, é uma coisa muito gira,
mas que há-de continuar a dificultar sempre esse tipo de organizações.
Porque, no fundo, a manipulação do individualismo é típica,
pelo menos, enquanto eu conheço nos últimos 42 ou 43 anos de vida
universitária. É isso que é outro fenómeno que agora
surge com alguma, enfim, manifestação que, deixará algumas
pessoas um pouco inquietas, o excesso de auto-estima. Ou seja, antigamente uma
pessoa doutorava-se e continuava na sua área a colaborar com as pessoas
que a tinham orientado. Agora não, as pessoas doutoram-se e passam a
ser, querem logo ir ao topo. São auto-suficientes, é uma espécie
de auto-suficiência deveras intrigante e que pode trazer alguns dissabores
a algumas pessoas.
7. Falemos agora de alguns projectos. Quais
foram os projectos que mais gostou de desenvolver aqui no Departamento, na Universidade
de Aveiro? Projectos de investigação e pedagógicos?
Prof.: A nível
pedagógico foi ajudar a criar o departamento e ter servido como orientador
e principal responsável pelos currículos das licenciaturas que
foram criadas. Aliás, devo dizer que a licenciatura em Biologia... Nós
tínhamos a licenciatura de Biologia/Geologia até 78 e a licenciatura
de Biologia, que havia alguma hesitações se se devia criar ou
não, já que nas outras universidades se queixavam que os alunos
saíam e não tinham saída. Eu devo dizer que tive muitas
dúvidas, embora fizesse pressão e argumentei, aqui até
junto da reitoria e do conselho científico que, na altura, que não
estava muito voltado para a criação da licenciatura em Biologia,
e tive o apoio, para isso, do próprio ministro. Era um amigo pessoal,
foi meu colega, o ministro de educação na altura...
Que
era...?
Prof.: Que era o
professor Vítor Crespo. Foi meu colega. Ele é que... O próprio
Conselho Científico do Departamento não estava muito virado a
votar favoravelmente a criação da licenciatura de Biologia. O
problema que eu lhes punha era: um Departamento
que não tem um processo de auto-geração dos docentes, está
condenado a morrer ou a descaracterizar-se ao longo do tempo. Se não
houver licenciados no Departamento que se doutorem e que possam progredir, acontece
que, ao longo do tempo, por falta de pessoal ou de interesse ou fica completamente
descaracterizado e sobrevive à custa de pessoas que vêem de outros
lados e não têm qualquer raiz. Enfim... Custa ganhar uma raiz local
para se ganhar algum gosto, porque só pelo emprego, isso já se
sabe que isto não dá, ou pelo menos muito dificilmente dá.
E foi este tipo de argumentos que acabou por convencer as pessoas a votarem
a favor da criação da licenciatura em Biologia. Eu lembro-me que,
na altura, o Departamento era relativamente pequeno e que a grande maioria das
pessoas não concordava muito que fosse criada uma licenciatura em Biologia,
porque: "- Então já há tantos biólogos, todos
aí no desemprego! " O problema era que a maior parte dos Biólogos
concorriam para o ensino
e faziam concorrência aos nossos licenciados em Biologia e Geologia. Durante
muito tempo, as pessoas todas da área da educação, opunham-se,
terminantemente, que fosse criada uma licenciatura em Biologia: " - Ai,
depois é mais uma concorrência aos nossos licenciados em Biologia
e Geologia." Eu, também, na altura era um pouco contra os cursos
de formação de professores integrados como funcionam aqui. Sempre
fui contra e continuo a ser, contra a ideia que é um processo errado
de formar pessoas. Este modelo de formar professores, que foi depois adoptado
por todas as universidades é uma das causas de fraco nível do
ensino superior.