Decidimos, neste primeiro número da Newsletter, incluir uma entrevista feita a um dos professores mais carismáticos do Departamento de Biologia - O Professor Doutor Gustavo Caldeira.

Fiquem a saber mais sobre o professor mais antigo do Departamento, Decano da Universidade de Aveiro e uma das pessoas responsável pela criação do Departamento de Biologia.

Nesta edição da newsletter será publicada a primeira parte desta entrevista.

Prof. Doutor Gustavo Caldeira - o professor Decano da Universidade de Aveiro

 

1. Podemos começar por dar a conhecer às pessoas o que o professor fez. Qual o ano da sua graduação e qual o seu percurso antes de chegar à Universidade de Aveiro?
          Prof. : Concluí a licenciatura em 58, depois estive uns anos no serviço militar (risos) e comecei a carreira académica propriamente em 63. A minha carreira académica foi feita, fundamentalmente, na então, Universidade de Lourenço Marques, doutorei-me em 1970 e depois fiz o concurso para associado e agregação em 75, em Fevereiro de 75.

          E concorreu logo para a Universidade de Aveiro?
          Prof.: Não. Ainda na Universidade Lourenço Marques, que na altura era feita pelas regras portuguesas, era portuguesa, e, portanto, tinha o concurso geral das Universidades Portuguesas. Aliás, a maior parte dos professores que constituíram o júri eram todos daqui, nem lá havia... estavam todos aqui, tinham vindo fazer parte da comissão instaladora da Universidade de Aveiro. Era o Prof. Ernesto [João Ernesto Rodrigues - 2º Reitor da U.A.] e outros... Enfim, três já morreram, mas eram todos da Universidade de Coimbra ou de Lisboa.
          E depois, logo em 75, quando foi a independência de Moçambique, eu ainda lá fiquei um mês. Isto foi em Junho e eu só vim em Agosto, a pedido da reitoria, que já era da FRELIMO. Toda a gente se veio embora, estava lá sem absolutamente ninguém que percebesse alguma coisa da Universidade e pediram-me para lá ficar, até publicarem uma revista que comemorava a independência de Moçambique, e eu fiz-lhes a vontade. Eles comprometeram-se e pagaram-me a viagem. Até porque o governo português disse que não pagava a viagem a ninguém que ficasse lá depois do 25 de Abril. E eu pus-lhes o problema:
                         -"Como é que é isto, e a minha família?"
                         -"O professor não se preocupe que a gente arranja-lhe o dinheiro para fazer a viagem!"
                         -"Pronto, se me garantem isso..."
          De maneira que vim para aqui em Agosto de 75. Apresentei-me aqui (na Universidade de Aveiro), logo depois que fui requisitado, em meados de Setembro de 75, na altura em que a universidade se resumia a ter uma reitoria ali, onde é hoje uma residência feminina, na Mário Sacramento e havia uns gabinetes e um bar num edifício que tinha sido emprestado, que é hoje o CET [actual PT Inovação]. Funcionava tudo aí. Éramos uma meia dúzia de pessoas, estava tudo nos primórdios. O único curso que abriu, nesse ano em Outubro, foi um bacharelato em Electrónica, já com tudo a funcionar!... No ano seguinte é que abrimos mais bacharelatos: um em Ciências da Natureza e outro em Ambiente. Foram os primeiros cursos que começaram a funcionar na área que envolve a Biologia.

 

2. Nós sabemos, também porque o professor comenta nas aulas, que ajudou a fundar esta Universidade, que foi uma das pessoas que esteve aqui desde o início. Como ocorreu o processo de fundar um Departamento de Biologia e a necessidade de criar o curso de Biologia.
          Prof.: Bem, isto inicialmente não era um Departamento. Quer dizer, inicialmente isto era um grupo de pessoas. Quando cá cheguei, o Professor José Ernesto já tinha arranjado colaboradores, que tinham vindo, quase todos, de Lourenço Marques. Era a Cândida Gil, a Cândida Pereira , a Helena Moreira e o Rino, que ainda não estavam doutorados e, portanto, foram mandados fazer o doutoramento. Depois vim eu, entretanto a minha mulher, e foi começar exactamente por esse núcleo de base, sendo recrutado depois o resto do pessoal.
          Nos primeiros dois anos, as disciplinas que funcionaram foram só aquelas disciplinas de carácter muito geral, para as Ciências da Natureza e para Ambiente. Havia uma Botânica Geral, uma Zoologia Geral, uma Fisiologia que era cadeira única... E foi o que funcionou! As licenciaturas, propriamente, só foram propostas em 1978/79. Primeiro, uma licenciatura em Biologia e Geologia, pois passaram o bacharelato em Ciências da Natureza a licenciatura em Biologia e Geologia. A licenciatura em Biologia, propriamente, só foi proposta em 82, porque inicialmente não havia quem desse as disciplinas e, mesmo assim, eu cheguei a leccionar uma colecção delas! Tive anos, e não foi só um nem dois, foram vários, em que tinha três disciplinas no 1º semestre e três disciplinas no 2º semestre! Microbiologia, Genética, a Fisiologia Vegetal... ainda cheguei a dar Ecologia! E depois eram as cadeiras para a Eng. do Ambiente: a Biologia do Tratamento de Efluentes, que era uma cadeira semestral. Portanto, aguentei isto tudo durante vários anos! Várias gerações que passaram por aqui tinham que fazer comigo estas cadeiras todas.

 

3. Qual é que pensa que foi a aceitação da comunidade científica nacional e internacional da Biologia, aqui em Aveiro?
          Prof.: Na altura, inicialmente, é evidente, parece-me que foi relativamente bem aceite. Embora não tenha havido assim muita inovação. O curso de Biologia, o primeiro currículo que tinha, era muito parecido com o que havia nas outras Universidades. Era muito idêntico, aliás, ainda hoje não é muito diferente. Há a tradição do ensino da Biologia muito naturalista. Eu nunca concordei muito, fui sempre alérgico a este tipo de biologia muito naturalista. Não é a minha formação base, quer dizer, começa por aí: eu nunca me dei bem com as aéreas da Sistemática, da Taxonomia, quer dizer, não são áreas que me agradem! Daí, que tentasse sempre, um pouco, que a Biologia fosse um pouco mais para a Biologia Funcional. Quando eu frequentei a Biologia, em Coimbra, nessa altura chamava-se Ciências Biológicas, e cadeiras de Fisiologia não tínhamos. Fisiologia não havia! Era, fundamentalmente, uma Biologia quase à Lineu. Mas eram todas as Universidades assim.

 

4. Então, em que é que acha que esta Universidade foi inovadora?
          Prof.: A primeira inovação ocorreu ainda antes de existir a Universidade de Aveiro, em 1964. Houve uma reforma geral dos currículos e, nessa altura conseguiu-se introduzir as Fisiologias. Eu era do movimento que pressionou fortemente para que isso acontecesse. E, na altura, era só assistente, mas havia mais colegas que pressionaram nesse sentido. Portanto, lá alterámos isto, porque, quando comparávamos com o que se fazia lá fora, até nos sentíamos, enfim, um pouco rurais! Em toda a parte já se fazia uma Biologia mais para o lado do funcional, mais do que se fazia em Portugal, que era estritamente na área da Morfologia, da Taxonomia e da Sistemática e não se passava disso. Na altura da criação do curso, só se alteraram o nome das disciplinas. Os Cormófitos ainda são dessa altura....
          De maneira que, a partir daí, o Departamento foi crescendo, vieram pessoas novas, e, sobretudo, passou haver outros meios, porque inicialmente, as próprias doações que a reitoria podia dar eram relativamente baixas, quer dizer, nós fazíamos uma ginástica doida para comprar os produtos químicos, os corantes... era uma coisa aflitiva, e, em muitas situações, eu tive que recorrer a dinheiro que era de projectos de investigação, para acudir às aulas práticas! Porque houve anos em que não havia praticamente verbas para funcionar. O dinheiro era quase todo para pessoal. Isto aconteceu até por volta de 87/88. Na altura, já tínhamos um financiamento do centro do INIC, onde íamos buscar algum dinheiro que também usávamos para as aulas.

 

5. Fiquei com curiosidade em lhe perguntar... Hoje em dia, o que é que um aluno que venha para a Universidade de Aveiro espera de diferente? O que é que faz a diferença entre estudar em Aveiro e, por exemplo, estudar em Coimbra?
          Prof.: Depende muito da área que escolha. Em Coimbra há uma compartimentação da Biologia em quatro departamentos diferentes: Botânica, Zoologia, Antropologia e a Bioquímica, e, portanto, como hei-de dizer, maiores possibilidades de se especializarem em áreas relativamente mais diversificadas. E haverá, talvez, um maior número de áreas. Por exemplo, nós nunca tivemos aqui Antropologia, nunca existiu aqui em Aveiro e poderá ser umas das possibilidades em Coimbra. No resto, não vejo assim... Bem, na área da Bioquímica também não é aqui muito desenvolvida, estará agora a começar a tentar expandir-se aqui no Departamento. Mas em relação à estrutura curricular, os cursos não são muito diferentes... o conteúdo das matérias é muito idêntico. Eles talvez tenham menos Ecologias do que aqui. Por outro lado, têm duas disciplinas de fisiologia em cada área: animal e vegetal, aqui só há uma de cada.

          A diferença está nas condições que os alunos têm para trabalhar?
          Prof.: É. Aí poderá haver algumas diferenças. E depois na parte terminal do curso, em que lá [em Coimbra] há mais dispersão. Como têm numerus clausus parecidos ficam com mais possibilidade talvez, mas... não vejo outra diferença. Em relação às estruturas laboratoriais, parece-me que são perfeitamente equivalentes, o que existe num lado existe no outro, não há assim grande diferença, mesmo com outros sítios.

 

6. E a nível internacional, como é que o professor acha que a nossa Universidade é vista lá fora?
          Prof.: Eu penso que está relativamente bem cotada. Em termos de investigação até é capaz de estar melhor do que as outras.
          Em termos de investigação, quando se vê os papers publicados nas revistas internacionais, a Universidade de Aveiro até aparece, comparando com as antigas, relativamente bem, apesar de muitas vezes não ter os meios, nem... enfim... Embora eles digam o contrário, que a Universidade de Aveiro tem sido beneficiada nas verbas para a investigação, eu não sei porquê! O sucesso tem outra razão. Normalmente, a Universidade de Aveiro tem um sistema de gestão, que lhe tem permitido concorrer e ganhar os concursos, porque tem sempre as continhas feitas em dia e os outros, normalmente, não têm uma contabilidade tão apurado, um sistema de gestão tão eficaz. Nisso até concordo quando os outros reitores se queixam que a Universidade de Aveiro, por vezes, é beneficiada. Não é beneficiada por ninguém, quer dizer, é uma questão dos concursos. E quando vêm os avaliadores internacionais acham que aquilo está relativamente bem feito e, portanto, poderá haver, tem havido aí algumas vantagens, em algumas áreas e, portanto, em termos de financiamento. Está claro que, depois, como a massa cinzenta é equivalente em toda a parte, é uma questão das melhores condições. A Universidade tem também, talvez, uma outra vantagem: é uma menor dispersão de pessoas. Porque, pelo menos em certas áreas em Coimbra, a dispersão é relativamente grande.

Aqui as pessoas acabam por tomar contacto com outras áreas mais cedo...
          Prof.: Aqui é mais favorecida a interdisciplinaridade, este tipo de organização em Campus, embora por Departamentos. Por outro lado, por permitir condições mais favoráveis para ser praticada, nem que seja em termos empíricos, a interdisciplinaridade. Porque em termos rigorosos cientificamente, a interdisciplinaridade é um pouco difícil, sobretudo na investigação. Aqui há uma coisa que as pessoas se esquecem: é muito fácil falar em constituir equipas com investigadores de várias áreas, mas depois esquecem-se do individualismo típico dos docentes universitários e, por isso, é uma coisa muito gira, mas que há-de continuar a dificultar sempre esse tipo de organizações. Porque, no fundo, a manipulação do individualismo é típica, pelo menos, enquanto eu conheço nos últimos 42 ou 43 anos de vida universitária. É isso que é outro fenómeno que agora surge com alguma, enfim, manifestação que, deixará algumas pessoas um pouco inquietas, o excesso de auto-estima. Ou seja, antigamente uma pessoa doutorava-se e continuava na sua área a colaborar com as pessoas que a tinham orientado. Agora não, as pessoas doutoram-se e passam a ser, querem logo ir ao topo. São auto-suficientes, é uma espécie de auto-suficiência deveras intrigante e que pode trazer alguns dissabores a algumas pessoas.

 

7. Falemos agora de alguns projectos. Quais foram os projectos que mais gostou de desenvolver aqui no Departamento, na Universidade de Aveiro? Projectos de investigação e pedagógicos?
          Prof.: A nível pedagógico foi ajudar a criar o departamento e ter servido como orientador e principal responsável pelos currículos das licenciaturas que foram criadas. Aliás, devo dizer que a licenciatura em Biologia... Nós tínhamos a licenciatura de Biologia/Geologia até 78 e a licenciatura de Biologia, que havia alguma hesitações se se devia criar ou não, já que nas outras universidades se queixavam que os alunos saíam e não tinham saída. Eu devo dizer que tive muitas dúvidas, embora fizesse pressão e argumentei, aqui até junto da reitoria e do conselho científico que, na altura, que não estava muito voltado para a criação da licenciatura em Biologia, e tive o apoio, para isso, do próprio ministro. Era um amigo pessoal, foi meu colega, o ministro de educação na altura...

          Que era...?
          Prof.: Que era o professor Vítor Crespo. Foi meu colega. Ele é que... O próprio Conselho Científico do Departamento não estava muito virado a votar favoravelmente a criação da licenciatura de Biologia. O problema que eu lhes punha era: um Departamento que não tem um processo de auto-geração dos docentes, está condenado a morrer ou a descaracterizar-se ao longo do tempo. Se não houver licenciados no Departamento que se doutorem e que possam progredir, acontece que, ao longo do tempo, por falta de pessoal ou de interesse ou fica completamente descaracterizado e sobrevive à custa de pessoas que vêem de outros lados e não têm qualquer raiz. Enfim... Custa ganhar uma raiz local para se ganhar algum gosto, porque só pelo emprego, isso já se sabe que isto não dá, ou pelo menos muito dificilmente dá. E foi este tipo de argumentos que acabou por convencer as pessoas a votarem a favor da criação da licenciatura em Biologia. Eu lembro-me que, na altura, o Departamento era relativamente pequeno e que a grande maioria das pessoas não concordava muito que fosse criada uma licenciatura em Biologia, porque: "- Então já há tantos biólogos, todos aí no desemprego! " O problema era que a maior parte dos Biólogos concorriam para o ensino e faziam concorrência aos nossos licenciados em Biologia e Geologia. Durante muito tempo, as pessoas todas da área da educação, opunham-se, terminantemente, que fosse criada uma licenciatura em Biologia: " - Ai, depois é mais uma concorrência aos nossos licenciados em Biologia e Geologia." Eu, também, na altura era um pouco contra os cursos de formação de professores integrados como funcionam aqui. Sempre fui contra e continuo a ser, contra a ideia que é um processo errado de formar pessoas. Este modelo de formar professores, que foi depois adoptado por todas as universidades é uma das causas de fraco nível do ensino superior.

 

Não perca, na próxima edição da Newsletter a segunda parte desta entrevista e fique a saber a opinião do Professor Doutor Gustavo Caldeira quanto ao processo de formação de professores, as causas do insucesso escolar, entre outros assuntos, do departamento e pessoais.