- Como e quando se começou a interessar pela Biologia?
Comecei
a interessar-me pela Biologia quando era aluna do liceu, principalmente por
causa de actividades como fazer um herbário – não sei bem em que ano, mas
seria talvez no quarto ano do liceu que nós fazíamos isso. Recordo muito bem
que ia ver árvores exóticas para o Palácio de Cristal e colher material. Foi
pela botânica que me apaixonei em primeiro lugar... e mantive essa paixão
durante toda a minha formação universitária. Depois o emprego que arranjei no
ensino universitário foi na área da zoologia! Apaixonei-me então pela
zoologia!
- A professora fez parte do seu percurso académico em Moçambique. Fale-nos desse percurso.
Tinha sido professora do ensino secundário em vários
liceus. Tive o meu primeiro emprego no Liceu Nacional da Covilhã. No ano
seguinte, fui para Lisboa onde estive dois anos no Liceu Rainha D. Amélia. Vim
depois para Aveiro, onde estive um pouco mais de um ano. Casei e fui para Moçambique,
para acompanhar o meu marido. Na altura, os licenciados que faziam a tropa sem
irem para a guerra podiam ser chamados para o curso de capitães - foi o caso
do meu marido! Uma das maneiras de evitar ser incorporado no curso de capitães
consistia em ir trabalhar para o Ultramar. Casámos e fomos logo de
seguida. Ele foi trabalhar como geólogo de campo. Estivemos lá quatro anos.
Fomos para África, recém-casados e sem conhecer lá ninguém! Levávamos, no
entanto, a indicação de um nome , o de um geólogo que tinha sido colega de um
nosso familiar: Renato Araújo!
- Era
uma das perguntas que tínhamos para lhe fazer. O que é que a fez voltar...
– Levei uma vida um bocadinho difícil em Lourenço Marques porque o meu
marido fazia longas campanhas no mato. Na fase inicial trabalhava seis meses no
mato e seis meses
em Lourenço Marques. Inclusivamente, só pode interromper essas estadias
no mato, no norte de Moçambique, quando nasceram os meus filhos. Só conheceu o
Pedro quando o miúdo tinha oito dias! Quando foi da Sofia, veio a casa uns dias
antes de ela nascer e foi-se embora quando ela tinha dois dias. Portanto, a
minha vida não foi assim muito fácil do ponto de vista familiar... ter filhos,
com o marido metade do ano fora... Eu tinha muita vontade de regressar! Conheci
muito pouco de Moçambique! Nessa fase tive que leccionar muitas disciplinas!
Recordo-me, por exemplo, que um mês depois de nascer a minha filha
tinha duas disciplinas teóricas para
leccionar pela primeira vez (nessa altura, tínhamos só um mês de licença
de parto). A minha actividade docente era pesada, mas basicamente tinha muitas
saudades de tudo o que dizia respeito à minha vida anterior! O Porto, o
bacalhau... Enfim...
- A
professora é natural do Porto?
Eu sou do Porto, nasci no Porto (sou tripeira).
- Para
além da sua actividade pedagógica na Universidade, a professora também deve
ter feito investigação em Moçambique...
Fiz!
Trabalhava em hidróides. O Professor Xavier da Cunha tinha-se interessado em
tempos pelos hidróides ao nível da taxonomia. O que eu andava a fazer
lá era uma tentativa de classificação dos hidróides de Moçambique.
Essa colecção acabou por ficar lá, não me foi autorizado trazê-la e,
portanto, esse trabalho não chegou a ser publicado. Cheguei a fazer desenhos,
identificar algumas coisas, mas o tempo que dedicávamos à investigação era
relativamente pouco, tínhamos muitas aulas, muitas turmas. Leccionei muitas
disciplinas. O meu prato forte nos primeiros anos foi a biologia médica, as práticas.
Ao fim de dois anos começaram as teóricas. Recordo-me que leccionei
hidrobiologia, ecologia e biogeografia, tive vários seminários, estágios de
final de licenciatura. Por exemplo, fui professora da Profª. Cândida Gil [antiga
professora do Departamento de Biologia da UA, também já reformada]
nessas cadeiras finais de licenciatura. Ela licenciou-se lá. E havia uma outra
colega dela, a Vanda... Praticamente dei os seminários para essas duas alunas
finalistas, na área da biologia marinha. Foi em Moçambique que comecei a
interessar-me pela biologia aquática. Ainda não definitivamente a biologia
marinha, mas abarcava, enfim, as duas áreas. Ensinei hidrobiologia e fazia
investigação em hidróides... aí comecei a fazer um bocadinho
de biologia marinha. E depois orientei os seminários da Vanda e da Cândida
Gil, que eram na área da biologia marinha.
- Como
é que era fazer investigação em Moçambique? Notou uma grande diferença
quando veio para Portugal?
Os Departamentos em Moçambique estavam muito bem equipados. Quando viemos
para aqui não havia nada. Parti de uma situação de Departamentos bem
equipados e vim para uma situação de nada, de carência total. Quando vim para
aqui, estávamos no edifício dos
correios! Havia alguma facilidade em fazer investigação em Moçambique, a nível
de equipamentos. Não havia era a nível de orientação... As pessoas em Moçambique,
que queriam fazer o doutoramento,
vinham fazê-lo para a Europa, para Inglaterra e outros países. E depois
regressavam a Moçambique... Eu não cheguei a essa fase. Se tivesse lá
ficado é que se iria colocar a necessidade de fazer o doutoramento, mas seria
mais tarde, porque só lá estive quatro anos. A investigação que eu lá fazia
era em simultâneo com a actividade docente. Aproveitava todo o tempo disponível
para trabalhar nos hidróides - mas ainda não com o objectivo de fazer o
doutoramento.
- A
professora quando voltou para Portugal veio para Aveiro?
Soube
da criação da Universidade de Aveiro pelo Professor Renato Araújo, que me
aconselhou a falar com o Professor Mesquita Rodrigues (membro da comissão
instaladora da UA), que me aconselhou
a candidatar-me. E eu assim fiz.
- Mas
quando saiu de Moçambique, já sabia da sua colocação?
Quando
saí de Moçambique já tinha sido aceite na Universidade de Aveiro. Ainda não
estava, no entanto, contratada. O contrato aconteceu antes de terminar a minha
licença graciosa. Não cheguei a regressar.
Vim
de férias, de graciosa, já com a promessa de ficar na Universidade de Aveiro.
Penso que me candidatei à Universidade de Aveiro em Janeiro de 74. Entretanto
tinha-se dado o 25 de Abril, tinham-se dado aqueles acontecimentos em Setembro,
em Lourenço Marques... houve alguma ansiedade em saber se o contrato seria
feito a tempo e horas ou se teria, ainda, de regressar.
- Agora
sabemos que o seu percurso inicial não teve a haver com a Ecologia, mas quando
veio para Aveiro, começou com Ecologia Marinha, a fazer doutoramento...?
A
nível universitário, estive sempre ligada
à ecologia a partir pelo menos do terceiro ano na Universidade. Depois
dos dois primeiros anos
entregaram-me teóricas para leccionar. E aí então é que foram as teóricas
de ecologia, hidrobiologia... A partir daí, surgiu a necessidade de aprender
para ensinar - os nossos conhecimentos na altura em Ecologia, tanto animal como
vegetal, eram muito rudimentares... não havia nenhuma abordagem quantitativa,
por exemplo. Era muito descritiva. Comecei a aperceber-me da necessidade de
utilizar uma abordagem mais quantitativa. Quando vim para Aveiro apercebi-me da
importância desta laguna, aqui ao pé da Universidade, e como já tinha alguma
vocação, ou digamos, alguma experiência na área da hidrobiologia... Seria
então importante fazer um doutoramento nesta área. Fui primeiro fazer um
mestrado em Recursos Naturais. Foi talvez a melhor experiência de aprendizagem
de toda a minha vida! Fiz o
mestrado na Universidade de Salford, em
Inglaterra – a dissertação já a fiz em lodos. Desenvolvi a minha tese sobre
o tema dos estuários. Para o doutoramento, trabalhei sobre Macoma balthica,
que é uma espécie de bivalve nórdica, dos lodos, não a temos por aqui.
Entrei na fauna bentónica estuarina durante o mestrado e, depois, prossegui com
esse tema no doutoramento.
- Então
o trabalho de campo não foi feito aqui?
Não,
foi tudo feito lá. Para o mestrado foi feito no estuário do Mersey e para o
doutoramento no estuário do Dee.
- Como
foi para si singrar como investigadora numa sociedade que pensamos ser na sua
altura, ainda bastante discriminadora quanto aos papéis possíveis de ser
desempenhados profissionalmente por uma mulher?
Eu
não senti qualquer dificuldade desse tipo. Nenhuma. Nem a nível de colegas,
nem a nível familiar. Talvez tenha sabido educar o meu marido, porque de facto
tive um apoio enorme dele nessa
fase... porque fui para Inglaterra sozinha e o meu marido ficou com os meus
filhos.
- Nesse
contexto, considerava-se como uma excepção à regra?
Havia
discriminação, até na lei, mas não a nível de investigação. Por exemplo,
na minha primeira colocação no liceu, os homens tinham preferência em relação
às mulheres. Recordo-me muito bem, creio que foi logo na primeira viagem,
quando fui colocada na Covilhã, ia no comboio um colega meu que foi colocado em
Lisboa. Apesar de uma diferença abismal nas nossas notas! As mulheres eram
colocadas depois de todos os homens terem sido colocados. Portanto, uma mulher
com 16, que era o meu caso, , só era colocada depois de todos os homens, mesmo
que tivessem 10... Portanto, aí, de facto, havia uma discriminação muito
grande. A nível da Universidade, eu comecei a minha carreira em África... não
tive hipóteses de uma carreira na metrópole, utilizando a linguagem que se
utilizava na altura... de fazer uma carreira de investigação, não tive hipóteses
nenhumas, apesar da minha classificação.
Quando
fui para Moçambique, pensava que ia continuar a ser professora do liceu. Aí,
havia mais hipóteses. O facto de eu ter boa nota garantiu-me a possibilidade de
trabalhar em investigação. E foi muito fácil. Não tive dificuldade nenhuma
por ser mulher. Talvez porque na altura a Biologia era dominada por mulheres...
O Professor Catedrático era homem, o Professor Xavier da Cunha. Mas, na altura
em que entrei, éramos três assistentes, só mulheres. Mais tarde chegou um
colega, que é hoje professor na Universidade de Lisboa e, a seguir, mais duas
mulheres. Na Botânica tínhamos o Prof. José Ernesto, o Professor Rino (na altura também
ainda assistente) [outro antigo Professor deste nosso Departamento, também hoje
já reformado], e o saudoso Dr.º
Ângelo Correia, como investigador Mas também havia várias mulheres, a Profª.
Fernanda Alcântara [mais outra antiga docente deste Departamento, também já
reformada], por exemplo. Depois aqui em Aveiro... absolutamente nada,
nenhuma dificuldade por ser mulher. As
maiores dificuldades que se colocavam na altura eram familiares. Penso que
muitas mulheres não fizeram mais por limitações dessa natureza. Colegas
minhas que podiam perfeitamente ter-se doutorado não o fizeram porque
consideravam que o seu dever principal era o de mãe. Eu tive que encontrar um equilíbrio entre os meus deveres.
Sempre considerei que os meus deveres profissionais e os meus deveres familiares
tinham que ser conciliados. Felizmente o meu marido também entendeu isto e,
portanto, nós, a nível familiar, conseguíamos resolver estes dilemas. É de
facto um dilema difícil e que faz com que muitas mulheres cedam a uma das
vertentes. Eu penso que soube e fui capaz de as conciliar.
- Não
gostou de viver em África?
Não
é não gostar... É interessante agora ver os slides que o meu marido fazia na
altura. Para ele era uma vida apaixonante. Mas nós, as “esposas”, ficávamos
muito tempo sozinhas. Eu suponho que, se tivesse vivido muitos anos em África,
teria ultrapassado essas dificuldades. Mas uma pessoa chega,
começa uma nova profissão, tem
filhos. Vai para estar com o marido
e depois passa meio ano sem o ver... e sozinha...
- Bem, falando agora mais do seu percurso actual, sabemos que a professora
esteve/está ligada à Ordem dos Biólogos. Foi a primeira Presidente da Mesa da
Assembleia Geral, não é verdade?
Estou ainda ligada à Ordem dos
Biólogos, como Presidente da Mesa da Assembleia Geral. Tinha estado muitos anos
ligada à Associação Portuguesa de
Biólogos. Estive dois mandatos na Direcção e, depois, com a necessidade de ir
todos os meses a Lisboa, às vezes mais do que uma vez por mês, ao fim de dois
mandatos deixei a Direcção e passei para Presidente da Mesa da Assembleia. Após
a criação da Ordem, tenho mantido o mesmo cargo.
- Como
é que vê essa experiência na Ordem dos Biólogos. Em que é que acha que
poderá ter contribuído para a evolução do Biólogo?
Eu empenhei-me muito em
colaborar na criação da Associação Portuguesa de Biólogos, em trabalhar com
a associação, porque era de facto essencial que os biólogos adquirissem uma
identidade profissional que não tinham. As pessoas tinham uma licenciatura na
área da Biologia. No princípio eram as Ciências Biológicas, depois passou-se
a adoptar a designação de licenciatura em Biologia, mas não existia a profissão
de Biólogo. Portanto, era extremamente importante que surgisse essa profissão.
Esses primeiros passos da Associação Portuguesa de Biólogos foram cruciais
porque hoje uma pessoa que trabalhe na área da Biologia apresenta-se como Biólogo,
coisa que não acontecia nessa altura. Ser Biólogo parece que nos dá algum
orgulho. O trabalho de podermos reconhecer com orgulho a nossa profissão foi
desencadeado pela Associação Portuguesa de Biólogos. Trabalho que foi
primeiro ao nível do nosso próprio
reconhecimento, como profissionais, e agora a nível legislativo. A profissão
de Biólogo é hoje uma profissão reconhecida legalmente.
- Foi
a principal batalha na génese tanto da Associação como da Ordem?
A batalha foi a de fazer
reconhecer esta profissão em termos legais e também em termos de
reconhecimento público e
institucional. E dos próprios biólogos se reconhecerem a si mesmos como
profissionais de uma área que se auto-regula hoje
através de um Código Deontológico.
- Considera
que a Biologia Aveirense já alcançou o seu lugar ao Sol no panorama nacional e
internacional ou que o caminho começado há alguns anos ainda está longe da
meta?
Eu,
em tudo na minha vida, nunca acho que se tenha alcançado o lugar ao Sol, e
portanto eu nunca alcancei esse
lugar. Eu própria já pedi a aposentação e continuo a trabalhar aqui, a
tentar fazer alguma coisa mais, alguma coisa melhor. Eu não acho que se chegue
alguma vez a uma posição ao Sol. Acho é que a Biologia em Aveiro progrediu
muito na quantidade e qualidade dos seus professores, dos seus investigadores.
Hoje o que nós fazemos aqui, em termos de ensino e de investigação é comparável
ao que se faz nas melhores universidades portuguesas. Eu penso que o nosso
ensino da Biologia é bastante bom, melhor do que noutros locais. A investigação
que fazemos também tem vindo a ser reconhecida como estando entre as muito boas
no País. Há já reconhecimento institucional do que nós fazemos, quer a nível
do ensino, quer a nível da investigação. Um lugar ao Sol, eu não aceito...é
uma metáfora. Eu não tenho essa visão das coisas. Se fizermos bem não nos
devemos sentar ao Sol.
- Com “o lugar ao Sol” queríamos também saber qual é a opinião da professora em termos de evolução do Departamento... A professora foi testemunha privilegiada do nascimento deste Departamento, esteve no núcleo de professores que o fundou.
Sim, eu sou a mais antiga no
Departamento, sou mesmo das professoras mais antigas da Universidade. Fui a primeira
pessoa que veio para a Biologia. Vim em 1974, fiquei cá um ano e depois fui
quatro anos para Inglaterra. Quando voltei já havia outros colegas. Estava cá
o Professor Caldeira, o Professor Rino, alguns assistentes. E claro,
o saudoso Prof. José Ernesto que era o Reitor nessa altura.
- Para além de ter sido testemunha
privilegiada do seu desenvolvimento, desempenhou também cargos directivos no
Departamento.
Exacto,
tenho desempenhado tudo quanto é cargo! Parece que já passei por todos, sendo
o último o de Directora de Curso. Pensava que já não ia passar por mais
nenhum e ainda há dois anos fui Directora do Curso de Ensino da Biologia e Geologia.
Estive na Comissão Pedagógica, Comissão Científica, Conselho Directivo,
estive em todas! Só este ano e no anterior é que não tenho cargos, mas tenho
ainda com algumas responsabilidades na
nossa unidade de investigação, o CESAM. Desempenhei sempre muitos cargos. Por
exemplo, numa fase inicial, no Conselho Pedagógico, eu estava a representar a
Biologia e a Biologia e Geologia. A grande discussão era se eu poderia votar
duas vezes ou só uma vez, porque se
trata de um órgão paritário e eu ocupava dois lugares! Chegou a haver de
facto esse tipo de discussão!
O
Departamento de Biologia cresceu, mas não cresceu sem convulsões...e também não
sei se cresceu da melhor maneira. A verdade é que foi crescendo e hoje, de
facto, eu penso que atingiu uma dimensão em que se pode considerar um
Departamento com dimensões quase ideais. Não penso que num futuro próximo o
Departamento de Biologia possa ou deva continuar a crescer de uma forma
significativa.
- Temos
agora o novo edifício, e este antigo irá passar a ser dedicado totalmente a investigação,
não é?
Penso que sim. O novo edifício é principalmente vocacionado para aulas e a investigação vai-se concentrar neste edifício. Vai haver uma folga... enfim, as pessoas vão-se adaptar a fazer investigação deste lado e dedicar-se à leccionação no outro edifício, que foi financiado pelo PRODEP e é portanto destinado principalmente ao ensino.
- Referiu há pouco a sua aposentação. A pergunta
que lhe queremos colocar é: agora que se aproxima a aposentação, acha que faltou
fazer alguma coisa na sua carreira como investigadora?
Faltou
fazer a agregação. Eu não concluí a minha carreira académica e isso é uma
coisa que me desgosta, porque ainda há um ano pensava concluí-la. Isto é,
estava a tentar arranjar tempo para a concluir. A decisão da aposentação foi
um pouco motivada por factores extrínsecos, mais do que intrínsecos. Não sei
se vale a pena referir... mas posso dizer-vos! Foi a nova legislação sobre
a aposentação e mais algumas coisas. Umas das razões foi a tendinite,
que me obriga a descansar o braço. Já tenho tendinite há dois anos, mas
andava a adiar isso até fazer, pelo menos, 60 anos. A nova legislação sobre a
aposentação obrigou-me a tomar uma decisão. Uma decisão que tem a ver com
uma fase tão difícil da vida como é o envelhecimento, e de quando é que
consideramos que estamos na altura de entrar nessa fase! Eu ainda não me achava
nessa altura e continuava a adiar essa decisão, que teve que ser tomada sob
pressão. De facto foi uma situação difícil, porque eu imaginava que iria
tomar essa decisão motivada por factores intrínsecos e não por factores extrínsecos.
- Mas
ainda há alguma coisa, não falando em termos de progressão na carreira académica,
que pense fazer em termos de investigação?
A
primeira coisa que quero fazer depois de me aposentar é tratar do braço,
dar-lhe algum descanso, algum tempo. Felizmente o único problema de saúde que
tenho é esta tendinite, que é uma doença profissional. Depois de me tratar,
depende. Se o Departamento continuar a acolher-me aqui com gosto, eu tenciono
continuar a vir até à Universidade, pelo menos escrever alguns artigos,
basicamente escrever alguma coisa.
- Com base em trabalhos já feitos? Ou tem ainda, por exemplo, alguns
alunos ainda sob a sua orientação?
Sim,
com base em trabalhos já feitos. Não tenho agora alunos sob a minha orientação.
Só tenho uma bolseira, a Ascensão Ravara, que está a organizar uma Colecção
de Referência de Invertebrados Marinhos. Mas a sua bolsa vai
terminar agora. Há algum tempo que me venho desligando desses compromissos.
Procurei nos últimos anos não assumir compromissos de longo prazo. A ideia da
aposentação já existia em mim e procurei, nos últimos anos, não assumir
esses compromissos, para que quando tivesse que tomar esta decisão, não
deixasse as pessoas “desgarradas”. Mas há coisas que se podem fazer e tudo
depende do ambiente que for criado à minha volta. Se eu sentir que há um bom
acolhimento no Departamento continuarei a vir cá. Tudo depende de como as
coisas se vierem a desenrolar, e também da saúde, é claro!
- Nós agora queríamos falar um pouco da pessoa,
e não da professora Helena Moreira...
Da
Maria Helena...
- Quem é a cidadã, quem é a pessoa? A
professora sai das aulas e gosta de fazer o quê? Se gosta de ler, música,
cinema, se tem algum hobby em particular.
Vocês
eventualmente já sabem que eu saio daqui todos os dias às seis, sete horas da
noite. Portanto não esperam que eu a essa hora ainda tenha muitos hobbies. Quem
me conhece há mais anos sabe que eu passei aqui a maior parte dos meus fins de
semana a trabalhar. Por exemplo a senhora do bar vinha para o bar e via-me aqui
sempre aos Sábados e Domingos. Mas já não faço isso desde que deixei o
Conselho Directivo, há uns cinco
anos. Mas às vezes trabalho em casa nos fins de semana, quando preparo as
aulas. Hobbies não tenho muitos, a não ser de facto ler, que é a minha paixão
preferida!
- Algum autor ou livro preferido?
O
que eu gosto de facto é de ler e gosto de ler coisas que me entretenham.
Romances e também romances policiais. Sei lá, numa fase li todos os romances
da Agatha Christie. Quando começou a sair a colecção li-os todos, tenho-os lá
todos em casa. Se calhar vou começar a lê-los novamente depois de aposentada.
A minha paixão pela leitura vem desde criança. Li as maiores obras quando
tinha os meus treze, catorze anos! Li Tolstoi, Dostoievsky... É
por fases! Nessa fase (dos treze, catorze anos) quem me marcou foram os
escritores russos. Leão Tolstoi – “Guerra e Paz”, Dostoievsky...
Pois,
“ A Mãe”...era esse que eu gostaria de frisar, de Maximo Gorky. Esses três
autores marcaram-me nessa fase da minha adolescência. Claro que nessa altura
também lia a Pearl Buck, por exemplo. Sei lá, agora não me lembro bem do que
tratava a Pearl Buck, mas era aquela vida no oriente, não é? Era, era...O meu
pai tinha muitos livros, era um autodidacta e havia uma biblioteca muito grande
em casa. Eu ia tirando os livros da estante, os livros do meu pai, que
felizmente na altura ainda era vivo. Digamos que nessa fase foi esse tipo de
literatura. Depois, numa fase já mais adulta, eu acho que devo mencionar o Eça
de Queirós e, a par, o Jorge Amado. O Jorge Amado foi quem mais me deliciou.
Era aquela leitura que eu lia com maior prazer! Recentemente o Mia Couto, por
exemplo. Ao contrário de quando eu era miúda e lia livros muito grandes, hoje
em dia já não tenho tempo para ler livros muito grandes. Eu gosto de ler, começar
e acabar, e o Mia Couto tem obras que se podem ler numa viagem de avião, de
comboio. Eu agora procuro muito coisas que se possam ler numa viagem. O meu
tempo é muito escasso para ler... Sim,
o Mia Couto é talvez um dos meus autores preferidos neste momento.
- E também tem uma escrita, uma componente
temática...
E
depois é Biólogo...eu não sei o que é que me atrai no Mia Couto! Se é o
lembrar da minha vida em África, que não foi longa mas...ou as expressões
dele, a maneira como compõe a linguagem. Eu não sabia inicialmente que ele era
Biólogo, só mais tarde é que vim a saber. A sua escrita tem qualquer coisa de
Biologia também! Fascina-me o Mia Couto! Acho que li tudo dele. Sempre que vejo
à venda uma nova obra dele, eu compro. No entanto, o que estou a ler agora é
“O Homem Dividido” do José Saramago. Gosto de ler Saramago, de ter muitas páginas
sem pontos finais...é exactamente aquilo que eu gosto. A princípio deve-me ter
feito confusão, mas agora gosto muito daqueles apartes que vai construindo,
construindo, construindo...aqueles pensamentos que vão sendo comunicados como
apartes! Adaptei-me bem ao Saramago e estou a ler agora “O Homem Dividido”,
às vezes até à meia-noite, antes de adormecer! Mas a minha vontade era de ter
um fim de semana para o ler de uma ponta à outra! Porque eu tenho de facto o vício
da leitura, mas é este vício de me entreter com uma história, e portanto não
sou uma intelectual a ler, não! Eu leio pela história, a história começa e
eu tenho que chegar ao fim para saber como é que ela acaba! Leio então muito
sofregamente, pelo que andar a ler assim muito pausadamente não é muito o meu
gosto. Mas, de vez em quando também o faço!
- Então cada policial é uma angústia até
chegar ao fim?
Até
chegar ao fim! Quando vou de férias para o Algarve levo uma resma de livros! E
compro livros de boa literatura, mas também compro alguns livros policiais. Às
vezes nem escolho bem os policiais, mas procuro uma boa colecção porque às
vezes nem conheço os autores! Quero algumas histórias só para estar
estendida...Para mim, ler é um sinónimo de estar absolutamente relaxada! É
aquilo que faço com mais gosto!
- E em termos musicais...
Não,
não sou muito apaixonada por música! Gosto de estar a ouvir, ouço, mas não
é aquela paixão pela música! A paixão é mesmo ler! E, quando era nova,
gostava muito de dançar!
- E cinema?
De
cinema gosto! Gosto para me divertir. Não ando muito a par de cinema, porque eu
não tenho tempo, mas quando há um bom filme gosto de o ver. Mas também não
me importo de ver o “James Bond”. Aliás, eu já fui ver o novo filme do
James Bond...
- E o Pierce Brosnan, deixa muito a desejar
relativamente ao Sean Connery?
Eu
acho que não! Mas este filme é demasiado estapafúrdio, demasiado artificial!
No entanto tem lá uma cena muito engraçada com espadachins. Essa cena está
muito bem conseguida! Lá o automóvel que fica invisível e o palácio no gelo,
essas coisas, isso é muito artificial! Bem, mas o que quero dizer é que gosto
de ver um bom filme, mas não tenho pejo nenhum
em ir ver o James Bond!
Divirto-me! Eu utilizo a leitura, o cinema, a música para descontrair e também
como enriquecimento pessoal! Mas, a parte da descontracção, de estar umas
horas sem pensar em nada, a não ser estar a divertir-me com uma boa história,
é a maneira como encaro a leitura.
- É costume perguntarmos ao entrevistado se tem
uma máxima de vida, e gostaríamos de saber se a professora tem uma máxima.
Não,
não tenho! Tenho é uma máxima de conduta, que é o brio, o colocar brio em
tudo o que faço! Esse brio procuro colocá-lo ao preparar as minhas aulas, ao
escrever um artigo, ao cozinhar ao Domingo para a família ou para os amigos!
Dantes fazia malhas para os meus filhos e depois tinha que pedir-lhes, não sei
quantas vezes, que se virassem para a frente, para trás, de lado! Eu tinha
produzido uma camisola, isso para mim era uma
satisfação enorme! Por exemplo, quando cozinho, eu chateio a família
até me dizerem que o cozinhado está bom, porque eu ponho todo o meu brio
naquilo. Não tenho uma máxima, mas a minha conduta é pôr brio em tudo o que
faço! Isto às vezes é difícil de conseguir quando temos tantas solicitações
como as que temos. Mas, é talvez o
que me caracteriza ... Penso que é um legado do meu pai!
- E agora, mesmo para acabar, há alguma mensagem
que queira deixar aos alunos futuros Biólogos? Algum aviso, algum conselho...
Se calhar o conselho vinha nesta linha, ponham brio em tudo o que façam.
Acho que vivi bem assim. Não quero deixar a mensagem de que as coisas estão más,
que as coisas estão difíceis para os alunos, embora a situação me pareça
bem mais difícil agora do que aquela que eu defrontei! Quando eu me
formei não havia praticamente investigação no país! Eu era boa aluna,
amava a Biologia, e não via saída nenhuma na área de investigação, mas
havia um emprego! E hoje em dia não há, e eu receio que isso esteja a trazer
problemas enormes às famílias! Eu vivo esse problema, tenho um filho que é biólogo!
Isto está mau para os jovens, mas eu não queria deixar uma mensagem desse
tipo. Queria deixar o conselho de que as pessoas trabalhem com brio, com
qualidade! Mas temos que ser realistas, e há uma coisa que os biólogos têm
que saber enfrentar: têm de ser capazes de criar o seu próprio emprego!
Portanto, tem que haver também iniciativa pessoal, porque há que
gerar a necessidade do próprio emprego. Contudo, os biólogos, ou por
falta de preparação, ou por maneira de ser, não têm muito essa iniciativa. Nós
temos que ser capazes de lhes ensinar, de os preparar para isso! Eu penso que a
Ordem tem essa percepção e está
a passá-la cá para fora, mas não é fácil porque aquela fase de: - Eu acabei
o meu curso, inscrevo-me numa lista e tenho emprego. Isso acabou!